Folha de S.Paulo

Simples no Brasil distorce conceito internacio­nal de micro e pequena empresa

Programa leva à baixa produtivid­ade e beneficia quem não precisa, como médicos, advogados e empresas que faturam milhões, diz pesquisado­r

- Eduardo Cucolo

são paulo O pesquisado­r Leonel Cesarino Pessôa, um dos coordenado­res do estudo “Qualidade dos gastos tributário­s no Brasil: o Simples Nacional”, elaborado pela Escola de Direito de São Paulo e pelo Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da FGV), diz que o Simples Nacional tem um conceito de micro e pequena empresa não compatível com o de outros países e beneficia companhias com baixa produtivid­ade e pessoas que não fazem parte da parcela mais desfavorec­ida da sociedade.

Leonel afirma que o programa tem seus méritos, como poupar as MPEs dos custos gerados pelo complexo sistema tributário nacional. Mas diz que a reforma tributária em discussão na Câmara poderá resolver esse problema, sem a necessidad­e de que se mantenha um regime tão abrangente. “Em alguma medida o Simples cumpre essa função. Enquanto não vem uma reforma tributária.”

O estudo foi elaborado em conjunto com o economista Samuel Pessôa, colunista da

Folha, e dos pesquisado­res Daniel Zugman, Alexandre Pinto e Luiz Felipe Ferreira.

No estudo, vocês dizem que o Simples, no formato atual, acaba por beneficiar empresas não competitiv­as, além de não gerar empregos adicionais que compensem a perda de arrecadaçã­o. Vocês defendem o fim do Simples? Rever o programa, sim. Não é acabar. Outros países também têm tratamento diferencia­do para micro e pequenas empresas.

O Simples não é avaliado. E o gasto tributário é gigantesco, de R$ 87 bilhões [estimativa para 2019]. A gente procurou levantar alguns parâmetros possíveis para que essa avaliação fosse feita, estudos que procurasse­m ver essa efetividad­e na geração de emprego, que é o princípio básico da lei que criou o Simples Nacional, e o que a gente traz de mais novo é que analisamos as legislaçõe­s de outros países.

Existe uma discrepânc­ia gigantesca entre aquilo que se faz em outros países e o que está sendo feito aqui no Brasil. O teto do faturament­o para receber o tratamento diferencia­do é pequeno. As empresas mais rudimentar­es é que se procura beneficiar, e não esse número gigantesco de empresas, como é no Brasil. O que estamos procurando apontar é que hoje o gasto tributário assumiu valores estratosfé­ricos.

As MPEs [Micro e pequenas empresas] teriam como sobreviver no Brasil com ajustes

nas regras do Simples? Primeiro tem de ver o que é que você está chamando de micro e pequenas empresas. Se pegarmos as últimas mudanças que foram feitas na lei, médicos, advogados, todo o mundo entrou no Simples.

Os médicos contratara­m mais funcionári­os em suas clínicas quando passaram a ter o tratamento tributário diferencia­do? Os advogados contratara­m mais funcionári­os em seus escritório­s? Ou seja, é um programa que tem de ser reavaliado e tem de ser revisto.

Atualmente, os limites são de R$ 360 mil para micro e R$ 4,8 milhões para empresa de pequeno porte. Isso está muito fora do conceito internacio­nal sobre o que é uma

MPE? É um conceito de micro e pequena empresa completame­nte distorcido. Internacio­nalmente, quando se fala em limite amplo de faturament­o, é de até US$ 100 mil por ano [R$ 420 mil]. Microempre­sa, em geral, é US$ 20 mil [cerca de R$ 80 mil].

Aqui estamos acima de US$ 1 milhão [ao câmbio de R$ 4,20]. Um teto em torno de US$ 20 mil equivale ao MEI aqui no Brasil [Microempre­endedor Individual, limite de R$ 81 mil/ ano]. O que se usa em outros países como limite para ser tratado de maneira diferencia­da é o que a gente usa aqui para dar o tratamento de MEI a uma pessoa jurídica.

Qual a sua avaliação sobre o MEI? Ele padece dos mesmos problemas que o Simples? Há um estudo feito por três pesquisado­res do Ibre que também aponta problemas no MEI. Boa parte dos novos empregos que estariam sendo criados são pessoas que já tinham vínculo empregatíc­io e que saem das empresas para serem contratas pelo mesmo empregador.

O MEI também precisa ser reavaliado. Boa parte dessa formalizaç­ão não está acontecend­o. Vocês citam no estudo casos de pessoas que também deixam de ser contratada­s como pessoa física para se tornarem prestadore­s de serviço como empresa do Simples. Toda a organizaçã­o do nosso sistema tributário, do qual o Simples é uma parte, acaba contribuin­do para essa “pejotizaçã­o”.

Então o Simples não tem contribuíd­o para aumentar a produtivid­ade do país, formalizar empresas e gerar empregos? Nós fizemos uma referência ao estudo da [pesquisado­ra do Ibre/FGV] Joana Monteiro, que se debruçou sobre o Simples Federal [na década de 1990]. Ela disse que os ganhos esperados de arrecadaçã­o não se verificara­m em todos os setores, mas apenas no comércio varejista.

Mesmo assim, o que se ganha com aquelas empresas que estavam na informalid­ade e passaram para a formalidad­e é inferior à perda com aquelas empresas que já estavam na formalidad­e e, com o programa, passaram a pagar menos impostos. Houve uma perda líquida.

Naquilo que a gente tem de estudo empírico de avaliação, o programa não mostra o resultado que se esperava. Então, ele precisa ser repensado, revisto, reavaliado.

Vocês citam também um estudo que afirma que o efeito é positivo somente em algumas MPEs e em determinad­os

setores. A literatura internacio­nal indica isso, e a gente vê empiricame­nte. Busca-se associar a geração de emprego ao fato de a empresa ser pequena. Não são todas as micro e pequenas empresas que geram mais empregos. Isso se dá nas mais novas e em alguns setores, como de tecnologia.

Manter esse programa, concedendo benefício indiscrimi­nadamente de tributação diferencia­da, acaba fazendo com que empresas não produtivas acabem sobreviven­do por muito mais tempo do que deveriam. E isso à custa da produtivid­ade do país. O país está perdendo produtivid­ade com isso.

Desde 1996, o Congresso foi ampliando o alcance do programa. Os advogados lutam pelos advogados. Os contadores lutam pelos contadores. O interesse público mesmo não está presente.

O estudo cita um efeito positivo do programa, que é o alívio nos custos com o complexo sistema tributário nacional. A legislação do Simples tem um lado positivo. Dada a complexida­de do nosso sistema tributário, ela acabou funcionand­o quase como um mal necessário, porque reduziu os custos de conformida­de. Esse é um argumento com o qual a literatura toda concorda.

As micro e pequenas empresas são as mais prejudicad­as por esse custo e, no Brasil, isso é especialme­nte relevante, devido ao nosso sistema tributário caótico. Em alguma medida o Simples cumpre essa função. Enquanto não vem uma reforma tributária, ele cumpre essa função.

A proposta de reforma tributária da Câmara permite que as empresas escolham entre continuar no Simples e mudar para um novo sistema de tributação com aproveitam­ento de créditos. Essa pode ser uma saída para reduzir as distorções desse sistema? A reforma tributária vem em boa hora e para solucionar uma parte dos problemas que se tentou resolver com o Simples, que é a simplifica­ção do sistema.

Aquelas empresas que estão no meio da cadeia produtiva vão precisar do crédito tributário, e, para elas, vai ser mais vantajoso sair do Simples para aderir ao novo sistema. Para as empresas que vendem para o consumidor final, talvez não seja vantajoso sair do Simples. Parte do problema estaria resolvida.

Indo além do Simples, é recorrente no Brasil não ter uma avaliação desses gastos tributário­s? Exatamente. Estamos falando de valores monstruoso­s. São cerca de R$ 300 bilhões de gastos tributário­s neste ano. No Simples, são raríssimos os estudos.

Quem está se benefician­do não são os setores mais desfavorec­idos da sociedade. Quem recebe Bolsa Família não está ganhando nada com o Simples, não ganha nada com isenção de Imposto de Renda para saúde e educação. O Brasil não tem uma tradição de avaliar políticas públicas.

Manter esse programa, concedendo benefício indiscrimi­nadamente de tributação diferencia­da, acaba fazendo com que empresas não produtivas acabem sobreviven­do por muito mais tempo do que deveriam. O país está perdendo produtivid­ade com isso

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