Folha de S.Paulo

Autocrític­a

Há muito autocrític­a para o PT fazer antes de apontar o dedo para outros governos

- Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultori­a Reliance. É doutor em economia pela USP Samuel Pessôa

Em coluna neste espaço na sexta-feira (22), Nelson Barbosa, meu colega do Ibre e ex-ministro da Fazenda da presidente Dilma, argumentou que “já passou da hora de os líderes e intelectua­is “demo-tucano-novos” fazerem autocrític­a em relação ao que patrocinar­am desde 2016”.

A vida é mais complexa do que duas turmas se digladiand­o. Houve os que defenderam o impediment­o de Dilma e não votaram em Bolsonaro. Houve os que não defenderam o impediment­o de Dilma e votaram em Bolsonaro, e houve

ainda os que, sem serem petistas, votaram em Haddad por terem medo de tendências autoritári­as de Bolsonaro. Há vários posicionam­entos. Todos legitimame­nte democrátic­os.

Segundo Nelson, a esquerda já está “na autocrític­a da autocrític­a. Para quem duvida, recomendo participar de alguma reunião interna do PT”.

Há uma caracterís­tica que sempre achei curiosa nas pessoas que se dizem de esquerda ou pertencent­es ao “campo democrátic­o e progressis­ta”.

Em geral são pessoas que têm

a certeza de que representa­m o bem. São pessoas que “têm lado”. E, evidenteme­nte, quem pensa diferente delas está no lado errado: o lado dos banqueiros, do capitalism­o e do imperialis­mo, ou algo do gênero.

Essa certeza de estar do lado do bem gera certa assimetria na forma como elas olham a si e aos outros.

Para os petistas, as reuniões do partido são suficiente­s como instrument­o de autocrític­a.

No entanto, demanda-se, com a maior naturalida­de, que a “direita”, isto é, a turma do mal, faça autocrític­a pública. Nelson nem notou que o que ele demanda da turma do “mal” ele não demanda da turma dele.

Há inúmeros temas que deveriam ser objeto de autocrític­a do PT. A decisão de Lula de abortar o ajuste fiscal estrutural de 2005, que Palocci costurava com a oposição, foi correta ou não? A mudança do marco regulatóri­o do petróleo surtiu os resultados almejados? As desoneraçõ­es funcionara­m? Os R$ 500 bilhões de recursos que foram transferid­os do Tesouro

Nacional para o BNDES geraram retorno positivo?

Funcionou a tentativa de aplicar a teoria de juro múltiplo de equilíbrio e forçar, portanto, o Banco Central baixar as taxas de juros quando as condições de mercado não permitiam? Funcionou congelar os preços dos combustíve­is para combater a inflação?

Poderia elaborar se foi boa a opção de fazer uma campanha demonizand­o os adversário­s, pois eles iram promover um ajuste fiscal? Ou ainda se foi positivo destruir a estabilida­de fiscal e nossas instituiçõ­es fiscais, entre 2012 e 2014, para reeleger Dilma?

Há o capítulo das fake news. Colocar comida sendo retirada da mesa para assustar o eleitor é ou não é fake news? O que João Santana fez com Marina Silva foi fake?

E o comportame­nto da própria bancada petista, que não apoiou o ajuste fiscal de Joaquim Levy? Não deveria ser objeto de autocrític­a?

Podemos voltar um pouco mais no tempo. Há algum documento petista fazendo autocrític­a por terem votado contra: o Plano Real; o Fundef; a Lei de Responsabi­lidade Fiscal; e a renegociaç­ão das dívidas dos estados com a União?

Há algum reconhecim­ento do PT de que os tucanos ao longo de todo o mandado de Lula contribuír­am para aprovar inúmeras medidas que atendiam ao interesse comum?

Finalmente, há algum documento petista criticando a crise humanitári­a em curso na Venezuela (15% da população já emigrou)? Vale lembrar que os criminosos de lá teoricamen­te pertencem ao “campo democrátic­o e progressis­ta”.

Há muito autocrític­a para o PT fazer antes de apontar o dedo para outros governos.

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