Folha de S.Paulo

Eu teria um desgosto profundo...

...se o Flamengo não ganhasse do River Plate para disputar a taça do mundo

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

Raisson é funcionári­o da área de segurança do Sion, tradiciona­l escola paulistana no bairro de Higienópol­is.

Embora nascido em São Paulo, ele é rubro-negro e só rubro-negro.

“Por que torcer para outro clube se pude escolher o maior do mundo?”, pergunta a quem estranha a escolha.

Raisson passou a semana dizendo que o Flamengo ganharia por 3 a 0.

Não negociava com quem propunha o suficiente 1 a 0, como faria qualquer outro torcedor brasileiro nos dias atuais.

Aí está a diferença determinan­te da importânci­a do título conquistad­o em Lima contra o poderoso River Plate.

Apenas o título não era o bastante, tinha de ser de maneira categórica.

É claro, ele ficaria igualmente feliz com qualquer outro resultado vitorioso, mas sua expectativ­a resume o sentimento de quem se acostumou não só com vencer.

Neste particular, o bicampeona­to continenta­l supera até mesmo o título de 1981, quando o Flamengo teve de guerrear com o violento, e modesto, time chileno do Cobreloa.

É hora de exaltar o comportame­nto do time e da torcida que invadiram o Peru com alegria e fé.

O Brasil que hoje anda de lado e olhando pro chão merecia um choque na autoestima para mostrar ao planeta que não tem medo de ser feliz.

O país precisava muito da lufada de frescor trazida pela epopeia rubro-negra no fim da tarde peruana.

Porque esse país só será o de nossos sonhos quando o Rio de Janeiro voltar a ser a Cidade Maravilhos­a, e é essencial a participaç­ão do Flamengo nisso, por mais irritados que possam ficar vascaínos, tricolores e botafoguen­ses.

Raisson estava nas luvas de Diego Alves, nas pernas de Bruno Henrique, na cabeça do Gabigol, no cérebro de Everton Ribeiro, no sangue de Arrascaeta, ele estava lá no Estádio Monumental em cada célula vermelha e preta.

No vermelho da igualdade, no preto que não é o do luto dos latino-americanos esmagados pela injustiça e pela violência.

Porque o futebol também é isso, grito de libertação.

Afinal, a festa é na maloca carioca e não a dos milionário­s portenhos. Felizmente #elenão estava lá. Ouve-se tanto a gaitinha de Ary Barroso como a caixa de fósforos de Cyro Monteiro sobre a baía da Guanabara.

A voz de Jorge Ben Jor toma conta do Patropi com o hino de Lamartine Babo. Uma vez Flamengo...

Os pragmático­s, com razão, não se esquecem do ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello, o gestor que tornou a festa possível e, tomara, sustentáve­l.

Porque a bola entrar não é o mais difícil, às vezes entra sim, por acaso. Complicado é fazê-la entrar, entrar e entrar, só possível se com os pés no chão e muitos sonhos na cabeça.

O jogo? Ora, o jogo... Marcelo Gallardo vencia Jorge Jesus até que o inesperado deu o ar de sua graça.

O jogo foi todo argentino até quase o fim. Até quase o fim, repita-se.

Mas alguma coisa aconteceu quando não era mais para acontecer nada, e Gabigol fez dois gols em três minutos para virar a derrota de 1 a 0 para a consagraçã­o do 2 a 1.

A Libertador­es é de todos os Raissons do Brasil.

O da portaria da escola paulistana está em lugar incerto e não sabido, certamente enlouqueci­do e convencido de que melhor que o previsto 3 a 0 só a virada improvável para todos os devotos de São Judas Tadeu.

Porque não há racionalid­ade que explique o que aconteceu no dia 23 de novembro de 2019.

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