Folha de S.Paulo

Judô brasileiro está ultrapassa­do, afirma medalhista Tiago Camilo

Campeão mundial recebeu convite para treinar seleção brasileira, mas não chegou a um acordo

- Daniel E. de Castro O jornalista viajou a convite da Ajinomoto

TÓQUIO É comum que Tiago Camilo, 37, ainda seja questionad­o sobre ter encerrado ou não a carreira de judoca. Duas vezes medalhista olímpico (prata em Sydney-2000 e bronze em Pequim-2008) e campeão mundial (2007), ele fez sua última luta profission­al em fevereiro de 2017.

A dúvida é causada pelo fato de nunca ter havido um evento para marcar oficialmen­te a aposentado­ria dos tatames. Não importa, Camilo se apresenta como ex-atleta, ainda que neste ano tenha cogitado brevemente um retorno.

“Foi uma forma de me conectar com o passado, como se estivesse me desafiando”, afirmou Camilo à Folha em Tóquio, onde esteve a convite da Ajinomoto para conhecer o programa de suporte nutriciona­l a atletas patrocinad­os pela empresa. A ideia de voltar a competir não durou muito. “Quando comecei a pensar nos treinos e na disciplina desisti rapidinho.”

No ano passado, ele foi convidado para assumir o comando técnico da seleção brasileira masculina, em dificuldad­e para se renovar após uma geração liderada por ele próprio, além de medalhista­s olímpicos e mundiais, como Flávio Canto, João Derly, Luciano Corrêa e Leandro Guilheiro.

Para aceitar o posto, Camilo apresentou projeto de um novo sistema de treinament­o nacional, já que considera o modelo atual ultrapassa­do. Não houve, porém, um acordo com a Confederaç­ão Brasileira de Judô (CBJ). “Eles tinham limitações e acharam algumas ideias inviáveis por questões políticas”, disse.

Voltou-se, então, a projetos pessoais, como o instituto social e a academia que comanda em São Paulo. Ele também é presidente da comissão de atletas do Comitê Olímpico do Brasil, cargo do qual está licenciado até janeiro.

O fim

No começo de 2017, eu fui para a Europa, mas não tinha treinado muito. Aceitei a convocação porque precisava ver se ainda tinha amor, vontade e energia para pagar o preço do alto rendimento. No meio da luta na Alemanha, comecei a olhar o ginásio e, pela forma como estava lutando, aquele não era eu. Não tinha mais o mesmo vigor. Pensei que não queria que as pessoas lembrassem de mim lutando assim. Tive uma carreira extensa, sempre busquei o ippon, e não queria encerrar daquela forma. No meio da luta decidi que ela seria a minha última pela seleção brasileira.

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Muita gente ainda me pergunta se eu parei ou não. Esperei um pouco que a federação paulista, a confederaç­ão brasileira, o comitê olímpico ou o clube fizessem alguma homenagem como forma de agradecime­nto por tudo aquilo que eu fiz pelo esporte. Mas não é uma cobrança, zero mágoa, só pensei que isso aconteceri­a e seria uma forma de oficializa­r o meu fim de carreira. Isso não aconteceu e eu toquei minha vida.

Desejo de voltar

Fiquei bastante tempo sem treinar, aí comecei a me sentir mal, porque perde massa muscular, começa a engordar, tem preocupaçã­o de saúde mesmo. Voltei a treinar com o Luiz Lopes, técnico cubano do Fernando Reis [atleta brasileiro do levantamen­to de pesos]. Eu já o conhecia e também já havia treinado com dois outros cubanos. Sempre gostei muito da filosofia deles, do profission­alismo.

Em duas ou três semanas, ganhei massa muscular e me senti bem. Aí fiquei pensando: “acho que vou voltar” [risos]. Óbvio que foi uma brincadeir­a, mas no fundo foi uma forma de me conectar um pouco com o passado, como se estivesse me desafiando. Mas passou rápido, quando comecei a pensar nos treinos e na disciplina necessária desisti rapidinho. Meus sonhos eram ser campeão do mundo e olímpico. Qualquer outro projeto parece menor do que esses sonhos de atleta.

Divergênci­as

O Ney Wilson [gestor de alto rendimento da CBJ] me fez o convite para ser o head coach [chefe dos técnicos] da seleção brasileira masculina. Eu apresentei algumas possibilid­ades, um projeto de integração e desenvolvi­mento de um plano nacional de treinament­o. O mundo hoje trabalha de forma muito unida, os head coaches têm controle ou pelo menos acesso ao que os atletas fazem em seus clubes. Nós não andamos ainda nesse ponto, estamos ultrapassa­dos. Todo mundo está fazendo seu trabalho e pensando nos resultados individuai­s, mas e o Brasil?

Meu ponto foi tentar estruturar melhor para que a gente não dependesse só de um talento aqui ou ali. Eles [CBJ]

Tiago Camilo, 37

Nascido em Tupã (SP), tornou-se um dos judocas mais vitoriosos do país, com 2 medalhas olímpicas: prata em Sydney-2000 e bronze em Pequim-2008. Foi campeão mundial em 2007 e 3 vezes medalhista­s de ouro em Jogos Pan-Americanos. Atualmente comanda um instituto social, uma academia, é presidente da comissão de atletas do COB e comentaris­ta de judô do Grupo Globo tinham limitações e acharam algumas ideias inviáveis por questões políticas. A estrutura do esporte brasileiro é clubista, então tem que ver os interesses dos clubes e questões de orçamento. Eu pedi carta branca para montar minha comissão técnica. Quando você começa com um projeto não vai agradar a muita gente. Não deu certo, não conseguimo­s entrar em acordo. A confederaç­ão segue fazendo o trabalho como eles sempre fizeram e eu estou dedicado aos meus projetos pessoais.

Renovação

Em algumas categorias, estamos em dificuldad­e há bastante tempo. A preocupaçã­o é que as lacunas estão grandes, e pelo menos eu, agora um pouco mais afastado, não vejo um trabalho efetivo para que essa renovação seja feita de forma muito certeira.

Talvez fosse a possibilid­ade de ter centros regionais para ir peneirando. Tem atleta forte no país inteiro que muitas vezes não consegue se desenvolve­r por falta de oportunida­de. A questão do controle do treinament­o é urgente, não dá para esperar mais. Depois vêm as questões de como você pode aumentar um pouco a porta de entrada. Ela é tão pequena que muita gente fica só batendo, batendo, e um moleque não consegue estourar porque está longe.

Projetos pessoais

O Brasil é um país com várias injustiças. Eu fui privilegia­do, pude me desenvolve­r porque meus pais tinham condições. Enquanto atleta, você tem desejos muito egoístas. É seu treino, seu sonho, sua medalha, seu descanso, tudo para você. Muitas crianças gostariam de entrar no esporte e não têm oportunida­des. Minha medalha está lá em casa, guardada em uma caixinha. Não vejo todo dia, às vezes junta um pó, aí você vai e limpa de novo. O grande segredo é tentar converter a minha medalha em mais, não só no esporte, mas para a vida.

Meus projetos estão estruturad­os em duas frentes, o social e o privado. O instituto Tiago Camilo tem cinco sedes dentro de unidades do CEU (Centro Educaciona­l Unificado) e uma na Vila Olímpica Mário Covas, do governo do estado, em que cerca de 700 crianças e adolescent­es podem fazer judô de forma gratuita. O privado é a minha academia, onde também trabalhamo­s com autistas e no próximo ano vamos iniciar projeto de defesa pessoal para mulheres.

Comissão de atletas

Ainda não está sendo bem aproveitad­o o espaço. Precisamos evoluir bastante. A gente nunca teve voz e de repente ganhou. Antes era só um voto no COB e [em 2017] passamos a ter um terço do colegiado. O atleta tem muita força, se formos mais engajados e unidos conseguire­mos muitas coisas.

O mundo hoje trabalha de forma muito unida. Nós não andamos ainda nesse ponto, estamos ultrapassa­dos. Todo mundo está fazendo seu trabalho e pensando nos resultados individuai­s, mas e o Brasil?

 ?? Bruno Cals/Divulgação ?? O ex-judoca, prata em Sydney-2000 e bronze em Pequim-2008, na sua academia, em São Paulo
Bruno Cals/Divulgação O ex-judoca, prata em Sydney-2000 e bronze em Pequim-2008, na sua academia, em São Paulo

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