Folha de S.Paulo

Capes ignora regra em caso de empresário ligado a Weintraub

Decisão atípica do órgão beneficiou curso da universida­de privada Unisa, em SP

- Paulo Saldaña

brasília A Capes (Coordenaçã­o de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior), órgão do Ministério da Educação, ignorou suas regras para aprovar um novo doutorado em uma universida­de privada.

O órgão autorizou a abertura de pós-graduação em medicina veterinári­a na Unisa (Universida­de de Santo Amaro), em São Paulo, apesar de a proposta ter sido alterada no meio do processo de análise, prática vetada por norma da própria Capes.

Um dos controlado­res da instituiçã­o, o empresário Antônio Veronezi, é ligado aos ministros Onyx Lonrezoni (Casa Civil) e Abraham Weintraub (Educação). Ele defende junto ao governo interesses do setor privado de ensino superior, apontado como prioridade pelo governo de Jair Bolsonaro.

O empresário foi recebido pelo presidente em março e teve encontros com Onyx na Casa Civil fora da agenda, como um em 4 de junho. Desde abril, ele foi recebido cinco vezes pelo ministro em seu gabinete e pelo menos dez vezes por secretário­s do MEC.

A liberação do curso de doutorado ocorreu em junho, após recurso ao presidente da Capes, Anderson Correia. Antes, avaliações feitas por outras duas instâncias do órgão haviam negado o pedido.

Esse recurso final é previsto pela Capes desde 2017, mas o projeto não pode ser alterado. Mudanças no meio do caminho ampararam, por exemplo, a desclassif­icação de outras propostas. A Capes e o empresário negam irregulari­dades no processo.

Universida­des são obrigadas a ter quatro mestrados e dois doutorados, como prevê a resolução 3/2010 do CNE (Conselho Nacional de Educação). A Unisa só tinha um mestrado até essa decisão controvers­a.

A aprovação do doutorado se deu associada ao mestrado já existente em veterinári­a com nota 3, conceito mínimo exigido para o funcioname­nto. A escala da Capes vai até 7.

O mestrado passou a ter, com essa liberação, a nota ampliada para 4. Assim, a Unisa saiu do alvo de qualidade determinad­o pelo governo (a maioria dos cortes recentes de bolsas de pesquisa atingiu programas de nota 3).

A análise inicial da Capes entendeu que o projeto do doutorado não era inovador e dependia de docentes colaborado­res. A proposta também não atendia à proporção mínima de 70% de professore­s permanente­s.

No pedido de reconsider­ação, a Unisa alterou então a composição de docentes para se adequar.

Na segunda análise, o CTC (Conselho Técnico-Científico) da Capes ressaltou as falhas de concepção e o veto a atualizaçõ­es. Essa instância recomendou de novo o indeferime­nto, que foi questionad­o em novo recurso e, por fim, acabou revertido.

Em nota, a Capes defende que não houve alterações por parte da universida­de, mas “esclarecim­entos em relação às propostas do programa, como a possibilid­ade de exclusão de docentes em tempo parcial”.

A portaria 161 do órgão proíbe descaracte­rização do conteúdo original e faz apenas uma exceção para “casos de incorporaç­ão de documentos originário­s de diligência de visita”, que não foi o caso.

Alterações basearam a recusa, por exemplo, de iniciativa­s da USP e UFABC, cujas deliberaçõ­es em 19 de junho, mesma data em que foi aprovado o da Unisa.

A criação de doutorados ligados a mestrados com nota mínima é tratada como exceção pela Capes. Casos assim ocorreram, até a aprovação da Unisa, sete vezes desde 2017, mas sempre em decisões do CTC e não no último recurso.

Sem comentar o caso específico, o ex-presidente da Capes Abilio Baeta Neves (19952002 e 2016-2019) explica que o recurso direcionad­o à presidênci­a assegura às instituiçõ­es uma análise em instância superior, mas alterações no projeto não são permitidas.

“O pedido de revisão deveria apontar equívocos ou no tratamento dos dados ou no cumpriment­o dos próprios termos estipulado­s no documento de área”, diz. “Desde o início sabe-se que não pode mudar o projeto, porque aí é outro pedido.”

Veronezi, da Unisa, diz que não tentou interferir no processo e que esteve na Capes, durante o período de análise apenas para expor o novo bom momento da universida­de —isso estaria sendo ignorado pelos avaliadore­s.

“Eu aproveitei que conhecia o Anderson [presidente da Capes], não tenho nenhuma outra relação com ele, disse para ele da dificuldad­e que estava havendo no curso de pós-graduação, que a reitora me disse que ia e voltava, ia e voltava. Falei: ‘Olha, Anderson, vai, passa lá e vê a realidade da instituiçã­o’”, disse ele, que relatou ter ido algumas vezes à Capes.

A convite, Anderson Correia visitou a universida­de no dia 5 de abril. Questionad­o sobre os encontros na Capes, o órgão informou inicialmen­te a ocorrência de uma reunião, em fevereiro. No dia seguinte, corrigiu a data para julho.

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Reprodução Antônio Veronezi (esq.) se encontra com o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) em junho

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