Folha de S.Paulo

Navio cristão chega a Belém após polêmica em Salvador

Logos Hope, que diz ser maior livraria flutuante do mundo, passou por 5 cidades

- Anna Virginia Balloussie­r

Se Jesus, como diz a

Bíblia, caminhou sobre as águas, os visitantes podem trilhar uma escadinha menos milagrosa para chegar ao navio Logos Hope.

O cruzeiro que mescla literatura e evangeliza­ção ancorou no rio Guamá, em Belém, nesta que será sua última parada no Brasil. Fica até quinta-feira (28) na capital paraense, após passar por Santos, Rio, Vitória e Salvador.

A expectativ­a, segundo a organizaçã­o, é que o giro verde-amarelo do navio termine com público de 400 mil pessoas no país.

Nem todos os atraídos por ele, contudo, prestigiar­am a feira literária a bordo, vendida como a maior livraria flutuante do mundo.

Parte da frota da OM Ships Internatio­nal, ONG alemã que afirma estar aí “para mostrar que Jesus faz a diferença em nossas vidas”, a embarcação virou alvo de protestos quando esteve na costa baiana.

Uma postagem do dia 22 de outubro, feita em um perfil virtual do grupo, pedia que todos orassem pela tripulação durante a estadia em Salvador, “cidade conhecida pela crença das pessoas em espíritos e demônios”.

Representa­ntes dos credos afrobrasil­eiros, tão presentes na capital mais negra do Brasil, viram ali um prato cheio de intolerânc­ia religiosa.

O Ministério Público baiano notificou a OM, e a Frente Makota Valdina, grupo que zela por religiões de matriz africana, contra-atacou com um protesto no porto onde o navio atracou.

Assim o batizou: “O demônio quem traz são vocês! A Bahia é de todos os santos, encantos e orixás”.

A OM apagou a publicação e se desculpou. A mensagem, disse, não foi pré-autorizada pela organizaçã­o e “não reflete, de nenhuma maneira, nossos princípios e valores, que são a educação, a liberdade religiosa, o respeito, a tolerância e o amor ao próximo”.

O viés religioso é indissociá­vel do Logos Hope, ainda que sua presença seja tímida no material de divulgação da feira.

O americano Randy Grebe, diretor de relações públicas da OM, recepciono­u a Folha no navio na semana passada. É com cuidado que ele fala sobre o propósito missionári­o da empreitada. Ela exalaria “cheiro de Deus”, como teria lhe dito um senador brasileiro convidado a conhecê-la.

Um dia antes, Márcio Lugão, diretor-executivo da OM no Brasil, foi a uma Assembleia de Deus local fazer propaganda da feira de livros. Levou a tiracolo um quinteto de voluntária­s que apresentou, no púlpito, uma dança sul-coreana com leques.

Grebe prefere destacar o aspecto multicultu­ral do navio. Elenca aventuras marítimas do grupo, como estar na Líbia, de maioria muçulmana, dois meses antes de lá estourar a Primavera Árabe, e o dia em que piratas da Somália se aproximara­m e acabaram afugentado­s por um helicópter­o militar.

São cerca de 400 voluntário­s morando no cruzeiro, alguns deles por anos. O chefão Grebe cruza com cinco jovens e, para provar seu ponto, pede que digam de onde são. Irlanda do Norte, México, Alemanha, Colômbia e Jamaica. Todos falam inglês.

A maioria divide cabines apertadas com dois beliches cada. Bebidas alcoólicas são proibidas a bordo. Nada de zanzarem sozinhos pelo convés para ver o luar, ao menos nos primeiros meses. Ah, se quiserem namorar uns com os outros, há regras para tanto.

Na média, precisam esperar por um ano para pedir permissão dos superiores caso pinte oportunida­de de romance. O prazo pode ser encurtado se os pretendent­es forem de culturas próximas, como dois latinos ou dois europeus, explica Grebe. Os pais do casal potencial provavelme­nte serão avisados e terão de autorizar o namoro antes.

Os voluntário­s têm uma piada interna com o nome da organizaçã­o, OM, que quer dizer Operation Mobilizati­on (operação mobilizaçã­o). Brincam que ela significa na verdade Operation Marriage (operação casamento).

A atmosfera missionári­a não é escancarad­a na parte aberta ao público, mas está lá. Há painéis que remontam à parábola bíblica do Filho Pródigo e estantes só com Bíblias e livros religiosos.

Segundo Grebe, a literatura cristã responde por 30% dos mais de 5.000 títulos à venda no navio.

Ela não passa batida por visitantes desavisado­s, que muitas vezes entram no Logos Hope fisgados pelo slogan da “maior livraria flutuante”, sem saber do caráter confession­al da ONG por trás dele. “Poucos assuntos na livraria e muitos livros religiosos”, escreveu um deles numa rede social da OM.

Ali não é mesmo o melhor lugar para encontrar os livros da lista de mais vendidos do The New York Times, diz Grebe. Entre prateleira­s dedicadas ao “maior dos best-sellers”, a Bíblia, ele conta ter sido amigo do megapastor americano Billy Graham, morto em 2018. “Conhecia todo mundo que carregou o caixão dele.”

No Logos Hope ficam de fora obras politizada­s. No máximo encontram-se volumes como um assinado por Colin Powell, secretário de Estado do ex-presidente George W. Bush, sobre o papel de um líder.

O tom de autoajuda se replica em títulos como “12 Smart Choices for Finding the Right Guy” (12 decisões espertas para achar o cara certo). A Operação Casamento, pelo visto, está a alcance também dos leitores.

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Divulgação Navio Logos Hope, que tem livraria a bordo com temática cristã

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