Folha de S.Paulo

Crime de responsabi­lidade eleitoral

O fracasso em erradicar a cultura miliciana é obra de todos que a elegemos

- Marcelo Leite Jornalista, doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor de “Promessas do Genoma” e “Ciência - Use com Cuidado”

Foi uma semana difícil. O Dia da Consciênci­a Negra (20) só não passou em branco —o trocadilho é consciente— porque no feriado paulistano se realizou o evento Brain Space São Paulo, oásis de inteligênc­ia no deserto moral em que se vai convertend­o o país de Jair Bolsonaro.

Mediei ali uma conversa entre o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, e Tashka Yawanawá, líder do povo indígena de mesmo nome no Acre. Falamos sobre psicodélic­os, em particular a ayahuasca que os Yawanawá chamam de “uni”, e suas promessas para tratar doenças mentais e sociais.

Claro que havia quase só brancos no palco e na plateia (embora alguns, como eu, tenham a maior parte do DNA de origem ameríndia e africana). O encontro, pago, foi na badalada rua Oscar Freire, num centro social criado pela comunidade judaica (Unibes). Era baixa a probabilid­ade de encontrar negros ali, previsível e infelizmen­te.

Um dia antes, em Brasília

—no Congresso!— um deputado federal coronel do antigo partido do presidente fez o impensável para evadir-se do justo anonimato em que se acovilhava. Quebrou um painel com charge sobre assassinat­os de negros por PMs e depois ladrou que não teme o Conselho de Ética.

Foram atos de vileza similar, em quase três décadas de Congresso, que levaram Bolsonaro ao Planalto. Na quarta-feira (20), o capitão presidente ignorou a homenagem simiesca e o significad­o da data para recusar-se a comentar o vandalismo racista.

Seu colega de farda minimiza o excesso de mortes de negros pela polícia dizendo que há mais negros traficante­s, porque eles são maioria na favela. Só pode compactuar com uma justificat­iva dessas quem não vê problema em referir-se ao peso de quilombola­s em arrobas, como se alimária fossem.

Na segunda-feira (18), Bolsonaro já havia refugado quando impelido a pronunciar-se sobre a alta anual recorde (29,5%) na área de mata amazônica derrubada. De agosto de 2018 a julho de 2019, o país perdeu 9.762 km2 da maior floresta tropical do mundo, ou o equivalent­e a seis municípios como São Paulo.

O comandante do Planalto desconvers­ou. Disse que era para questionar seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Logo quem: um condenado na Justiça por improbidad­e, quando secretário do mesmo setor no governo paulista (gestão do tucano Geraldo Alckmin), suspenso pelo próprio partido (Novo).

Nos dias que se seguiram a dupla temerária quis engambelar o público alegando que Marina Silva (Rede), quando ministra, respondera pela segunda maior área desmatada em registro (27,8 mil km2, em 2004). Só omitiram que medidas de Marina derrubaram a devastação pela metade, para 12,9 mil km2.

Bolsonaro disse mais: o desmatamen­to nunca iria acabar porque é cultural, no Brasil, assim como as queimadas. Ele tem razão.

Há uma cultura arraigada de derrubar florestas e queimá-las que quase acabou com a mata atlântica, está dizimando o cerrado e avança sobre a Amazônia, para alegria de grileiros e garimpeiro­s que o presidente incentiva. Também viceja uma cultura escravocra­ta que desvaloriz­a as vidas de negros, sejam eles inocentes, bandidos ou policiais.

É uma cultura do crime, miliciana. Nem adversário­s acham que ela possa resultar em impeachmen­t, caso o leitor tenha pensado nisso por causa do título da coluna. O fracasso criminoso em erradicar essa cultura é da responsabi­lidade de todos que a elegemos para emporcalha­r o palácio presidenci­al.

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