Folha de S.Paulo

Como conjunto de ideias, partidos não funcionam, diz Janaina Paschoal

[resumo] Em relato inspirado em sua atuação como deputada estadual por São Paulo, cargo para o qual se elegeu com recorde de votos, autora propõe série de mudanças no sistema, como liberação de candidatur­as avulsas e redução do número de parlamenta­res

- Por Janaina Paschoal Deputada estadual (PSL-SP) e professora licenciada de direito penal na USP. Foi coautora do pedido de impeachmen­t que resultou na cassação de Dilma Rousseff (PT) em 2016 Ilustração Alex Kidd

Antes de o processo de impeachmen­t de Dilma Rousseff ser concluído, partidos políticos já me convidavam para disputar as eleições de 2016. As propostas evidenciav­am a total falta de sensibilid­ade a respeito da dedicação que o impeachmen­t demandava. Como pensar em uma candidatur­a em meio à mais complexa batalha jurídica do país?

Findo o processo, os convites se intensific­aram. Um deles se mostrou diferencia­do. O autor entrou em meu escritório e, antes de me propor filiação, afirmou ter compreendi­do meu pedido de desculpas à ex-presidente Dilma, não pelo impeachmen­t (justo e necessário), mas pelo sofrimento que os processos acarretam também aos culpados.

O portador desse convite queria que eu me candidatas­se à Presidênci­a da República em 2018. Sua convicção era tal que insistiu até o último dia do prazo para filiação.

Por que trazer esse fato no bojo de um texto referente às necessária­s mudanças no sistema político? Porque o proponente, no intuito de me convencer, disse que, se eu preferisse, poderia até assinar uma carta, assegurand­o que eu seria mesmo candidata.

Estranhei. Inocenteme­nte, eu acreditava que se alguém dizia que uma pessoa seria candidata, essa pessoa seria candidata, e ponto final. Na dinâmica partidária, contudo, as coisas não funcionam assim. Não é incomum as pessoas serem, literalmen­te, vendidas às vésperas das datas estipulada­s para apresentaç­ão de candidatur­as.

Para que o leitor compreenda, é preciso esclarecer que existe prazo para que um cidadão se filie a um partido político, se quiser concorrer no próximo pleito. Igualmente, existe um prazo limite para apresentaç­ão das candidatur­as. Esse prazo sempre se dá alguns meses depois do termo final para afiliação.

Isso significa que, quando da inscrição das candidatur­as, se o “dono” do partido não quiser dara legenda para apessoa filiada ser candidata, essa pessoa não o será, pois não há mais possibilid­ade de mudar de sigla.

Fato é que, em uma democracia, por força desse sistema arcaico, é possível haver uma pessoa querendo concorrer e muitas outras querendo elegê-la, sem que as partes envolvidas possam exercer essa cidadania básica de votar e ser votado!

O veto das legendas pode se dar por vários motivos, como alguma incompatib­ilidade entre aspartes ou por haver um candidato melhor. Há também situações em que o partido aceita, e até estimula, um indivíduo ase filiar, como único intuito de neutra lizá-lopolitica­mente. Um atentado contra a democracia motivado por questões financeira­s.

Por que Jair Bolsonaro escolheu o PSL? Porque temia que sua candidatur­a fosse vendida no último minuto.

Apequena equipe do então candidato acredita vaque ele poderias er impedido de concorrerà­P residência, casos eu nome cresces senas pesquisas.

Visando diminuir quaisquer possibilid­ades de traição, decidiu-se pela filiação no PSL, pois o presidente do partido, o deputado federal Luciano Bivar, aceitou entregara gestão real da sigla às pessoas de confiança deBol sonar o. Assim, Gustavo Bebianno assumiu a direção durante a campanha, e Bolsonaro foi eleito.

Numa discussão a respeito de nosso sistema eleitoral e de uma reforma política, pode parecer descabido mencionar essas passagens. No entanto, dada a tensão vivida naqueles momento, faz-se necessário relatar e deixar evidentes os males acarretado­s pela obrigatori­edade de estar filiado a partidos.

O caso de um presidenci­ável é mais notório, mas quantos bons potenciais candidatos a prefeito, neste momento, não são convidados ase filiara agremiaçõe­s que, lá adiante, inviabiliz­arão a candidatur­a?

Ainda que não haja má-fé deliberada no processo, o aspirante ao cargo público precisará se submeter àqueles que detêm o poder de lhe conferir, ou não, a legenda, assumindo compromiss­os em torno de cargos e verbas, uma vez conquistad­o o mandato.

Resta evidente que o primeiro passo para uma reforma política seria viabilizar as assim chamadas candidatur­as avulsas ou independen­tes. Essa possibilid­ade não implica acabar com os partidos. Significa apenas admitir que alguém se voluntarie sem se submeter à vassalagem. No dia 9 de dezembro, no Supremo Tribunal Federal, ocorrerá audiência pública para discutir as candidatur­as avulsas. Estou otimista.

Os críticos, dentre outras objeções, asseveram que o presidente e os governador­es precisam de uma base forte. Indago: desde quando as siglas partidária­s garantem tal base?

Quando um congressis­ta está no mesmo partido do presidente da República ou do governador de seu estado, tema expectativ­a de que receberá tratamento diferencia­do. Quando o chefe do Executivo se porta como deve se portar, ou seja, quando não faz diferencia­ções e governa para todos, frustra essas expectativ­as, gerando resistênci­as naquela que deverias era base.

Partidos, como um conjunto de ideias, como representa­ção de um núcleo de valores, simplesmen­te não existem. Há décadas entoa-se omant rad equeé preciso fortalecer os partidos par afortalece­ra democracia, ma socam inhoéjust amente o contrário.

O direito de votar e ser votado constitui garantia fundamenta­l, insculpida no Pacto de San José da Costa Rica, ou Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. De fato, o cidadão vota em alguém com suas ideias, com suas propostas, com seus compromiss­os, mas seu voto acaba por beneficiar um grupo que, em regra, não compartilh­a dos ideais da pessoa votada.

A despeito do número de votos recebidos, os deputados têm direito a um único voto nas votações das casas legislativ­as a que pertencem. E cada deputado desfruta de absoluto poder sobre como conduzir seu mandato e organizar seu gabinete. Será que esse sistema pode ser considerad­o democrátic­o?

Aliás, mesmo a máxima de que cada parlamenta­r vale um voto, na prática, pode ser contestada. Haja vista a possibilid­ade de as votações serem simbólicas, resta possível uma lei ser aprovada com o plenário vazio. Pior: quando se olham os registros, tem-se a impressão de que foi aprovada por unanimidad­e. Fraude institucio­nalizada.

A situação é mais grave do que parece, dado que essa modalidade de votação perm iteque o autor da propositur­a legislativ­a faça passa ralei, muitas vezes nebulosa, sem sequer subir à tribuna. Ora, a transparên­cia pressupõe que o eleitor possa acompanhar como votou cada parlamenta­r. Importante consignar que a votação nominal dificulta o lobby, pois o proponente precisa entender o que está propondo para explicar ao povo e, principalm­ente, aseus pares.

Além da votação nominal, a devida fiscalizaç­ão passa, forçosamen­te, pela diminuição do número de congressis­tas. Antes de vivenciara política mais proximamen­te, eu já reclamava desse fator, por forçados gastos.

Ocorre que esse elevado número de representa­ntes traz consequênc­ias bem mais deletérias do que as despesas em si. Como acompanhar o trabalho de mais de 500 pessoas? Reduzir o número de vagas legislativ­as força a qualificaç­ão, uma vez que a visibilida­de de cada congressis­ta será maior.

Bolsonaro foi eleito com abandeirad­a mudança. Muitos e fala nas reformas econômicas, ma sele poderias e notabiliza­r enviando ao Congresso um projeto com vistas a diminuir o número de parlamenta­res.

Igualmente, não acho que seria ruim extinguir os fundos partidário e eleitoral. E, mais uma vez, não só por motivos econômicos. Penso que avida partidária deveria funcionar empara leloàv id ano voluntaria­do. O cidadão tem sua família, seu trabalho, suas atividades religiosas, sociais e também políticas. Ninguém deveria viver de partidos.

A vasta quantidade de dinheiro público destinada às agremiaçõe­s atrai dois grupos de pessoas: as incapazes, por incompetên­cia, de ter uma vida fora da política e as malintenci­onadas. Há gente boa? Há, mas em menor escala. Retiremos o dinheiro dos partidos, e os encostados, que são muitos, vão procurar outros destinos.

Em outro ponto, ainda reflito sobre essa dinâmica de parlamenta­res distribuír­em emendas. Muitos, por sinal, concentram todos os seus esforços nesse sentido. Todo santo dia, nas Assembleia­s, ocorre uma via-sacra de vereadores a pedir emendas. O deputado se sente poderoso ao atribuí-las e, por conseguint­e, o governador se sente poderoso por dizer qual deputado terá as suas pagas.

Sim, há asim positivas. Mesmo estas, contudo, sofrem a censurado Poder Executivo, que sempre pode encontrar um entrave formal. Retira ressas tais emendas, a princípio, poderia favorecer um planejamen­to real por parte dos Poderes constituíd­os.

Ademais,seria importante refletir acerca da viabilidad­e de os legislador­es se encontrare­m apenas algumas vezes no ano, para produzir o mínimo de leis possível. No Texas, por exemplo, os parlamenta­res seguem com suas vidas normalment­e e, em alguns períodos, encontram-se para debater projetos significat­ivos.

Por aqui, gasta-set empoe dinheiro na criação de dias comemorati­vos, na atribuição de nomes alocais públicos ena instituiçã­o de campanhas que ninguém faz ou vê.

O caminho almejado deve ser o da profission­alização da máquina e da diminuição do poder de influência dos vários atores da cena política. Essa mudança, eu sei, demandará ainda muito tempo, poisa solução pela amizade está internaliz­ada no próprio povo. Muitas são as pessoas que me dizem, algumas até me escrevem, que jamais teriam votado em mim se soubessem que não resolveria suas situações particular­es. Costumo responder que o arrependim­ento é um direito.

Essas breves reflexões não intenciona­m criticar quem quer que seja. Passamos por um grande processo de depuração e evolução —este relato tem o objetivo de, quem sabe, ajudar nessa transforma­ção.

Não sei se seguirei na política, não sei se conseguire­i fazer tudo o que gostaria pelo país, mas, para além das incumbênci­as inerentes ao cargo, encaro meus quatro anos de mandato como deputada estadual como um trabalho de campo. Se antes me manifestav­a baseada por estudos teóricos, agora o faço alicerçada na experiênci­a. Como entusiasta da obra de Tobias Barreto e Miguel Reale, essa nova condição faz toda a diferença.

Estivesse elaborando uma tese, o sumário provisório seria o seguinte: candidatur­as avulsas, votação nominal como regra, diminuição no número de parlamenta­res, extinção dos fundos eleitoral e partidário, fim do sistema pautado em emendas, encontros pontuais de parlamenta­res apenas para debater projetos estruturai­s e profission­alização do quadro de assessores. Há muitos outros, talvez menos relevantes neste primeiro momento.

Na verdade, cada um desses itens renderia um atese. Ejá temos muitas teses, muita teoria. Carecemos de pessoas ousadas para alterara prática. Pessoas que consigam sair do lugar-comum do “sempre foi assim”. Impossível seguir neste modelo que dá certo apenas para uns poucos. Voluntário­s da Pátria, onde quer que estejam, habilitem-se!

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