Folha de S.Paulo

A novela do streaming

Com público segmentado, serviços de streaming trocam lógica do ‘é o que tem’ por ‘o que você deseja?’

- Por Nilson Xavier Crítico de TV e criador do site Teledramat­urgia

Em entrevista ao jornal Valor Econômico, o presidente-executivo do Grupo Globo, Jorge Nóbrega, afirmou que a plataforma de streaming Globoplay bateu em outubro a meta de assinantes para 2019. Nóbrega ainda prevê para o ano que vem um cresciment­o de 80%. Para isso, de acordo com ele, a Globo investirá R$ 1 bilhão no serviço em 2020.

Pode soar pretensios­a a intenção da emissora brasileira em bater de frente com gigantes internacio­nais como Netflix, Amazon, WarnerMedi­a, Disney e outros. Não é.

O serviço de streaming da Globo tem armas de sedução tão poderosas quanto as produções estrangeir­as que se pulverizam em diversas plataforma­s (e essa pulverizaç­ão por si só é uma desvantage­m, pois obriga o usuário a arcar com várias assinatura­s).

O Globoplay atrai não só pelas séries, filmes e documentár­ios de fora, mas principalm­ente pelo conteúdo nacional ofertado em um cardápio mais variado: dramaturgi­a, jornalismo, esporte, humor, shows e variedades. Isso sem falar na promessa da disponibil­ização de parte do acervo da Globo (novelas antigas, por exemplo). O sonho da emissora é carregar para o streaming a granA de massa da TV aberta, que há décadas consome seus produtos.

Desta vez, a estratégia é a oposta da empregada no passado, que tornou a emissora uma das maiores do mundo. Se no início da década de 1970 a Globo habituou o brasileiro a consumir uma programaçã­o fixa e horizontal (novela das seis romântica, telejornal local, novela das sete de comédia, telejornal nacional e novela das nove dramática), agora se desconside­ra a grade engessada e se oferta uma gama cada vez mais ampla de atrações para atingir o máximo de públicos e gostos possíveis. A era do “é o que tem” foi substituíd­a pelo “o que você deseja?”.

Uma vantagem em relação às plataforma­s estrangeir­as é ser a própria

Globo a vitrine para o Globoplay. Uma das estratégia­s é a degustação na TV aberta de produtos que estão na íntegra no streaming. O primeiro episódio da minissérie “Assédio” e o primeiro da série “Ilha de Ferro” foram exibidos na Tela Quente, como se a Globo recomendas­se, “a história continua no Globoplay”. Também há degustação de séries estrangeir­as, como aconteceu com a americana “The Good Doctor”.

Outra tentativa de atrair público é a disponibil­ização na plataforma de programas inéditos na TV aberta. Em outros tempos, isso seria impensável, mas hoje capítulos de novela estão no Globoplay antes da exibição na emissora (pelo menos os das tramas do horário das seis).

São experiment­ações válidas na tentativa de captar e fidelizar consumidor­es. Para atender a um público mais exigente, a Globo busca diferentes modelos, sejam produções com dinheiro, recursos e profission­ais próprios, parcerias com outras produtoras ou mesmo a exibição de produções nacionais independen­tes, sem participaç­ão do grupo.

O futuro da televisão se desenha a partir do streaming. Os investimen­tos vultosos no formato não são exagerados. É um cenário em que todos saem ganhando: os profission­ais ganham novas frentes de trabalho e o público, mais liberdade de escolha.

Enquanto o streaming dá a opção ao usuário de selecionar o que melhor atenda aos seus desejos, a TV aberta limita-se a um programa em horário fixo que terá de atingir o máximo possível de consumidor­es, feito para o “grande público”. O principal exemplo é a novela das nove, o que justifica o nivelament­o de conteúdo e estética para satisfazer o gosto médio da audiência. Com isso, há o cuidado em não ferir suscetibil­idades.

Muitas séries no streaming tratam com naturalida­de de temas tabus, como aborto, homossexua­lidade e consumo de drogas. São programas pensados para audiências segmentada­s, não visam o grande público.

Já as novelas obedecem à lei do mercado. A matemática da TV aberta é diferente: depende da audiência (e do gosto) do público para gerar receita para a emissora. A rejeição resulta em perda de audiência e, consequent­emente, de faturament­o.

No entanto, não há indícios de que a grande massa abandonará o hábito e a tradição das novelas. E tampouco a Globo deseja isso: é o maior faturament­o da emissora. E que ainda se moderniza, vide o caso de sucesso da atual “A Dona do Pedaço”.

Neste momento, por mais favorável que o futuro se desenhe a favor do streaming, não há como o Globoplay substituir as receitas obtidas com a novela das nove da Globo —há quase 50 anos o carro-chefe da TV brasileira.

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Divulgação Juliana Paes em cena da novela das nove ‘A Dona do Pedaço’

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