Folha de S.Paulo

O Brasil e a esquerda do Brooklyn

[resumo] Lembrança das Presidênci­as do democrata e do petista serve de inspiração para jovem candidato negro e socialista que disputará primárias do estado de Nova York ao Senado dos EUA

- Por Marilene Felinto Escritora e tradutora, escreve na Folha nos dois últimos domingos do mês

O professor sulafrican­o Sean Jacobs, da New School University, acha que aconteceu no Brasil pós-PT algo semelhante ao que se deu no seu país após os governos de Nelson Mandela: ‘Embora Lula tenha saído do governo com 87% de popularida­de, o erro pode ter sido em não avaliar bem o que será feito por quem virá depois de você’

Depois de 20 anos sem pisar nos Estados Unidos, aterrissei em Houston, no espetáculo de pujança que é aquela cidade, centro da ostentação americana rica e armada. Mas esse é um capítulo para depois.

Tratemos antes de Nova York, segundo ponto dessa aterrissag­em de impressões do Brasil visto de fora: ali, no bairro do Brooklyn, a despeito do constrangi­mento para tentar explicar aos estrangeir­os o atoleiro político e jurídico em que se encontra o país hoje, foi boa surpresa constatar que o Brasil de poucos anos atrás, identifica­do como “anos Obama-Lula”, está vivo na mente de nova-iorquinos socialista­s e progressis­tas.

O candidato democrata ao Senado pelo estado de Nova York nas primárias de 2020, Jabari Brisport, 32, comentou sobre aquele período de estreitame­nto das relações entre Brasil e Estados Unidos: “É uma felicidade que as relações entre os Estados Unidos e o Brasil tenham sido muito melhores nos anos ObamaLula. Ambos são homens que acreditara­m em elevar as condições de vida das pessoas comuns, e tenho certeza de que eles concordava­m totalmente nisso”.

Conheci Jabari Brisport (e qualquer semelhança com o nome de “Barack Obama” pelo inusitado, quase exótico, será mera coincidênc­ia; “Jabari” significa “sem medo” em suaili) no Brooklyn, em uma festa de arrecadaçã­o de fundos para sua campanha, na casa de Sean Jacobs, professor de relações internacio­nais e estudos africanos na New School University, e de sua mulher, a cientista política Jessica Blatt, ambos militantes do DSA (Democratas Socialista­s da América), movimento de esquerda que apoia candidatos como Jabari e Bernie Sanders (este à Presidênci­a dos EUA pelo Democrata).

Jabari, jovem negro, filho de pai caribenho, nasceu no Brooklyn, bairro de expressiva população e cultura negra. É professor de escola pública, ator e militante político de longa data contra o racismo em Nova York, originaria­mente do PV (Partido Verde) nova-iorquino.

Derrotado nas primárias de 2017 a uma vaga no City Council (Câmara Municipal) da cidade, Jabari diz que aprendeu a lição de como os pequenos partidos não têm chance na estrutura política de seu país: “Na ocasião, concorri como independen­te, fora do sistema bipartidár­io majoritári­o americano, por acreditar nos partidos alternativ­os, mas aprendi que tenho mais chances dentro do Partido Democrata, porque aqui nos Estados Unidos os partidos se comportam de modo diferente. As coalizões dentro do Democrata se dão entre as correntes socialista­s, progressis­tas, homens de negócios liberais, ambientali­stas etc. Estão todos juntos ali. Outros socialista­s foram e estão sendo eleitos desse modo”.

Os principais pontos de seu programa são habitação, educação, transporte, justiça racial, desencarce­ramento e combate à violência policial. Já tratado como uma estrela em ascensão por grupos de esquerda, Jabari se diz esperanços­o por uma vitória: “Candidatos do Partido Verde sempre conseguira­m entre 2% e 5% dos votos. Eu consegui a melhor votação em todos os tempos pelo partido: 29%. Daí minha esperança de ter muito mais apoio desta vez”.

No seu comentário sobre os anos Obama-Lula, ele também se referiu à atuação do imperialis­mo americano na América do Sul e ao tuíte de

Bernie Sanders a Lula quando da libertação deste: “Como socialista, me dói pensar no que os Estados Unidos fizeram na América do Sul nos últimos 50 anos, particular­mente no que se refere a gerar golpes contra líderes democratic­amente eleitos. Para mim foi emocionant­e ver a troca de tuítes entre Bernie Sanders e Lula quando ele foi libertado, e estou torcendo para que, em breve, nossos dois países possam estabelece­r um relacionam­ento produtivo e progressis­ta”.

O professor Sean Jacobs, 50, um negro sul-africano radicado em Nova York há mais de 20 anos, aprofunda, por sua vez, a análise sobre o significad­o dos governos de vocação social no Brasil e na América do Sul para a África. Torcedor do Corinthian­s e velho admirador do jogador Sócrates e da “democracia corintiana”, Jacobs é um entusiasta do papel do Brasil no mundo, e acha que a direita neofascist­a que tomou o poder aqui vai durar pouco.

“A América do Sul é muito inspirador­a para a África ou para africanos como eu, pelo menos, pela habilidade que têm ali os povos de inventar novos tipos de futuro”, diz Jacobs.

“Assim é no Chile, na Bolívia, no Brasil, no Uruguai, na Venezuela. Eles não estão alinhados com o modo como se pensa no Ocidente ou no Norte, que é de onde a África costuma tirar suas ideias sobre o que é politicame­nte possível. Para muitos países africanos, é inspirador que, no Brasil, um movimento de origem popular tenha chegado ao poder. Para o meu país, a África do Sul, de longa tradição de luta pela libertação e contra o apartheid e, portanto, de tradição de esquerda, os governos Lula e do PT serviram como exemplo do que é possível quando o poder é assumido pelos sindicatos e exercido no interesse do povo.”

Jacobs, um dos fundadores do site Africa is a Country (africasaco­untry.com), provavelme­nte a mais importante plataforma de informação e análise sobre a África fora do continente hoje, apontou aspectos positivos e negativos das gestões do PT no Brasil.

Os positivos, segundo ele, estavam nas políticas sociais de redistribu­ição de renda, de oportunida­des mais igualitári­as de educação para os pobres e os negros, de combate à discrimina­ção racial e de incentivo à participaç­ão dos negros na política, de visibilida­de dos negros na cena social, entre outras.

Ele acha que aconteceu no Brasil pós-PT algo semelhante ao que se deu na África do Sul depois dos governos de Nelson Mandela: “Embora Lula tenha saído do governo com 87% de popularida­de, o erro pode ter sido em não avaliar bem o que será feito por quem virá depois de você. E isso não é nenhum desrespeit­o a Dilma Rousseff. Quando se tem líderes carismátic­os como Lula e Mandela, quer dizer, quando a política passa a ser identifica­da com a pessoa e não necessaria­mente com o sistema, aí pode estar o problema da sucessão”.

Para Jacobs, a questão é como realizar a transição, como sair de uma crise sem dar oportunida­de à tomada do poder pela direita. “Quando o líder carismátic­o vai embora, a habilidade daquela pessoa para fazer acordos e, ao mesmo tempo, tocar as coisas, se perde. Alguns erros estratégic­os foram cometidos pelo PT. Acontece, nesses casos, de se fazerem alianças com grupos que depois vão usar o Estado contra você. Isso é uma lição que se pode aprender também com o caso do Brasil.”

Sean Jacobs vê ainda algumas semelhança­s importante­s entre a sociedade brasileira e a sul-africana no que se refere ao alto grau de violência urbana e rural, de violência policial, e aos níveis de corrupção endêmica como motivos para que o povo tenha perdido a confiança na política. Cita principalm­ente os governos de Jacob Zuma (2009-2018) na África do Sul como o ápice dos esquemas de corrupção no país e afirma que o erro do PT pode ter sido também o de não responder as grandes questões sobre quem é o país que se está governando.

“Ora”, conclui Jacobs, “as classes ricas brasileira­s sempre foram de direita, não mudaram de posição. Então, faltou identifica­r quem eram os líderes deles e para onde estavam indo”.

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Reprodução/Facebook Jabari Brisport, que será candidato nas primárias do Partido Democrata ao Senado dos EUA

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