Folha de S.Paulo

Eu já vi esse filme

Assim como a proibição de álcool criou a máfia, a de drogas gera classe criminosa

- Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade” Jorge Coli | dom. Jorge Coli, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

Quero compartilh­ar minha admiração por um filme bem antigo. Quem já viu, sabe como ele é impression­ante, mesmo 87 anos depois.

“Scarface” (1932), dirigido por Howard Hawks, conta a saga de um criminoso. A câmera se desloca em tomadas sem corte, longas, lentas e misteriosa­s, pondo-se a serviço de ação violentíss­ima. O início, sinuoso e contínuo, numa época de aparelhos pesados que não facilitava­m o manejo, vai da rua para um salão de festas onde um velho gângster será assassinad­o. Do autor do crime, vemos só a sombra e o som de um assobio entoando trecho da ópera “Lucia di Lamermoor”: é o mundo da máfia italiana em Chicago.

Os assassinat­os sucedem-se na guerra de gângsteres, sem música de fundo, sob o som atordoante dos tiroteios, dos disparos em série pela metralhado­ra Thompson, leve e portátil, inventada na época. Tony Camonte, que se eleva como chefe dos malfeitore­s, descobre essa arma com o encanto de um menino diante de um novo brinquedo. Conta-se que Hawks quis usar, em algumas cenas, projéteis verdadeiro­s.

A ação brutal é relançada a cada instante, sem que o roteiro se preocupe muito em aprofundar os motivos.

As mortes são degraus para uma ascensão e, mais do que compreende­r as circunstân­cias, o importante é constatar. Howard Hughes, o produtor, desejou que o filme fosse “tão excitante, realista e horrível quanto possível.”

Perseguiçã­o em automóveis, atrocidade­s assassinas no meio das ruas, explosões, mortes e mais mortes, em banalizaçã­o que torna “Scarface” um precursor de Tarantino. A bandidagem de Chicago, sórdida e covarde, parece constituíd­a por loucos perigosos.

Tony Camonte é marcado por uma cicatriz em forma de cruz no lado esquerdo do rosto (que dá nome ao filme: “scarface”, cicatriz na face). Ele secreta uma repugnânci­a física e moral. Agita-se, infantiliz­ado e abjeto. Na sua perpétua e irrequieta avidez pelo poder, é secundado por Guino, sereno, lançando e apanhando um centavo no ar, obtuso em sua fidelidade cega.

O primeiro é interpreta­do por Paul Muni, que eclode como ator de Hollywood; o segundo, por George Raft, que saíra dos bairros difíceis de Nova York. Boris Karloff (o monstro de Frankenste­in do ano anterior), tem um papel pequeno, mas uma cena assombrosa, ao ser assassinad­o jogando boliche.

“Scarface” era também o apelido de Al Capone. Ou seja, o filme se nutriu de uma situação real: a violência que invadia as grandes cidades, provocada pelo crime organizado, crescendo como nunca se vira antes. A causa foi a Lei Seca, proibindo a venda de álcool em consequênc­ia de campanhas moralistas. O contraband­o levou as gangues ao poderio.

As energias do filme vinham, portanto, de uma experiênci­a vivida e que se tornara insuportáv­el. Esta situação, e as cenas brutais, levaram à intervençã­o da censura. Ela obrigou a inserção de um aviso no início, acusando a indiferenç­a do governo diante da inseguranç­a e interrogan­do: “O objetivo deste filme é perguntar ao governo: o que você vai fazer a respeito?” A resposta, sensata, veio no ano seguinte (1933), com a eliminação da Lei Seca, ato que abalou seriamente o poderio das gangues.

Em 1983, Brian De Palma realizou um remake de “Scarface”, com o mesmo título. Al Pacino teve o papel principal e De Palma, com sua veemência lírica e muita liberdade em relação ao modelo, fez uma obra à altura. Captou o espírito de sordidez estúpida que Hawks insuflara no filme original.

Como no anterior, trata-se de uma questão contemporâ­nea: não mais o tráfico de bebidas, mas o tráfico de drogas, desta vez retratando uma rede internacio­nal muito mais ampla e poderosa. Seu roteirista, Oliver Stone, ele próprio viciado em cocaína, formulou: “Existe uma proibição contra drogas que cria a mesma classe criminosa, como a proibição de álcool criou a máfia”.

Seria sensato que, ao invés de criminaliz­adas, as drogas estivessem sob venda controlada, como hoje o álcool. O narcotráfi­co move bilhões de dólares e, em quase todo o mundo, qualquer droga pode ser encontrada facilmente na primeira esquina. A guerra contra as facções está perdida de antemão: ela acentua a criminalid­ade que, no caso do Brasil, se infiltra na polícia e na política, com poder imenso e crimes incontávei­s.

Percebe-se agora, em vários países, mesmo que de maneira discreta, uma tendência à legalizaçã­o dos entorpecen­tes. Mas isso caminha de modo muito lento. O moralismo virtuoso e cego torna-se o instrument­o de interesses criminosos internacio­nais. Eles são fortes demais e impedem que a solução sensata avance.

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