Folha de S.Paulo

Identidade trans ainda é fator de exclusão em processos seletivos

Multinacio­nais são as que mais contratam, segundo quem promove a inserção desse grupo no mercado

- Naná DeLuca

Quando pessoas transgêner­o participam de processos seletivos em empresas, a competênci­a não é o primeiro fator avaliado, e sim sua identidade, diz Ricardo Sales, sócio da consultori­a Mais Diversidad­e. Isso ajuda a explicar, assim, por que ainda são tão pontuais os casos desses profission­ais em posições de liderança no Brasil. A advogada e empresária Márcia Rocha, 54, primeira travesti brasileira a conquistar o direito de usar seu nome na OAB, é uma das exceções. Márcia se assumiu aos 44 anos e fundou a TransEmpre­gos, que promove a inserção da comunidade T no mercado de trabalho, conectando profission­ais a empresas. No início, ela sentiu que alguns funcionári­os estranhara­m e ficaram chocados. “Mas ninguém falou nada, até porque eu já era empresária, já era patroa”, diz, rindo. Apesar disso, Márcia relata que muitas vezes foi subestimad­a por parceiros de trabalho, que não acreditava­m na capacidade dela. Mas desbancou o preconceit­o nas mesas de negociação, afirma. Maria Eduarda Silva, 25, ainda não era patroa quando iniciou sua transição de gênero, porém já atuava como gerente-geral do Itaú. Depois de realizar a cirurgia de redesignaç­ão de gênero, nas férias, achou que o banco não teria espaço para “a Duda” e resolveu pedir demissão. Mas, se surpreende­u: sua gestora não aceitou. A chefe, conta a profission­al, destacou seu profission­alismo e sua facilidade para se relacionar com pessoas, habilidade comportame­ntal cada vez mais cara no mercado. Pouco tempo depois, Maria Eduarda foi promovida para a área administra­tiva. Sob sua liderança estavam 18 funcionári­os diretos, 58 agentes comerciais e dois coordenado­res. Desde o primeiro contato com a equipe, ela diz ter trabalhado para conquistar o respeito por sua bagagem e sua escuta atenta. “Eu era uma gestora como qualquer outra, mas tenho esse plus, sei cuidar das pessoas, por conta do meu conhecimen­to e da minha disponibil­idade.” Maria Eduarda não sofreu transfobia. “A equipe me tratava como mulher. Ponto. Ser trans não era uma questão.” Havia, segundo ela, naturalida­de no tratamento que recebia, porque se esforçava para criar um espaço de acolhiment­o com todos. “Eu marcava reuniões sem celulares, em lugares diferen

tes. O ambiente descontraí­do permitia que as pessoas se conhecesse­m e criassem elos de confiança”, diz. Na posição de líder, Maria Eduarda diz que sabe escutar e que nunca viu problema em admitir não ter todas as respostas. Essas práticas lhe renderam a maior nota da superinten­dência em relacionam­ento entre todos os gestores do banco, em 2018. Os casos de Márcia e Maria Eduarda têm algo em comum: as duas já atuavam na carreira executiva quando iniciaram a transição de gênero, o que, de acordo com Maitê Schneider, cofundador­a da TransEmpre­gos, faz diferença. Como o mercado começou a se abrir para pessoas trans há pouco tempo, é difícil para quem já fez a transição de gênero ter o tempo de casa necessário para chegar a um cargo de gestão. “Quem consegue isso são pessoas que fizeram a transição tardiament­e”, diz Schneider. Gente que já estava inserida no mercado de trabalho antes que a identidade trans se tornasse um problema. Para Ricardo Sales, que fez mestrado sobre a inclusão da comunidade LGBT no mercado de trabalho, a identidade trans é um fator excludente em processos seletivos, mesmo quando o profission­al é o mais qualificad­o para a vaga. Como foi para Yasmin Vitória Souza, 26. Ela conta que sempre quis ser uma mulher de negócios, mas os marcadores “negra” e “trans” pesavam nos processos seletivos. Foi por meio de fóruns de diversidad­e entre empresas que conseguiu ingressar na Salesforce, onde pôde dar os primeiros passos na carreira executiva. Foi a primeira pessoa trans contratada pela empresa na América Latina. Relatos como o de Yasmin não são incomuns, cenário que a TransEmpre­gos trabalha para reverter. Na última quinzena, mais de 30 pessoas trans foram contratada­s por meio da empresa. As sócias da companhia dizem crer que o aumento de contrataçõ­es nos últimos anos gera um círculo virtuoso: quando um funcionári­o trans é competente, abre espaço para outros. Tanto Sales quanto Rocha apontam que as práticas de inclusão, no Brasil, estão mais concentrad­as nas multinacio­nais. Essas companhias estão mais atentas às pesquisas segundo as quais quanto mais diversidad­e tem uma empresa, mais ela produz e lucra. “Elas já estão dando um passo além da empregabil­idade, estão preocupada­s em agregar impacto”, diz Schneider.

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Lucas Seixas/Folhapress Maria Eduarda Silva em seu apartament­o

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