Folha de S.Paulo

A volta do camarada

- Por Juliana Sayuri Jornalista e historiado­ra, autora de “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018)

Discussões sobre o legado de Stálin, líder sanguinári­o da antiga União Soviética, agitam setores da esquerda no Brasil e no mundo.

Discussões sobre o legado do líder da antiga União Soviética agitam setores de esquerda no Brasil e em outros países. Enquanto uma ala defende méritos do revolucion­ário comunista no combate contra os nazistas, outra vê a negação de seus crimes como terraplani­smo ideológico

Um espectro ronda a esquerda, o espectro do stalinismo.

O clichê, inspirado na célebre frase de abertura do “Manifesto Comunista” (1848), tem razão de ser: Josef Stálin (1878-1953), que faria aniversári­o na quarta (18) passada, volta a ter seu legado discutido e reabilitad­o nas redes sociais, tanto no Brasil como em outros países.

Nos dias 26 e 27 de novembro, a editora NovaCultur­a.Info, da URC (União Reconstruç­ão Comunista), promoveu o evento “140 anos do camarada Josef Stálin” na FFLCHUSP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universida­de de São Paulo), a fim de celebrar o aniversári­o do revolucion­ário comunista —cerca de 70 pessoas participar­am da atividade.

Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarióno­vitch Djugashvíl­i adotou o famoso pseudônimo em 1913 —em russo, “Stálin” remete a “feito de aço”. Após a morte de Vladimir Lênin (1870-1924), ele governou a URSS de meados da década de 1920 até a sua morte, 33 anos depois.

O selo Edições Nova Cultura, da URC, vem se dedicando a resgatar a história do líder soviético, com a publicação de livros como “Anarquismo ou Socialismo?” e “Sobre os Fundamento­s do Leninismo”, de sua autoria. Segundo Lucas Medina, 32, da NovaCultur­a.Info, a última tentativa de editar livros de Stálin no Brasil foi interrompi­da na década de 1950. Após edições esparsas, nada expressivo foi às livrarias desde a década de 1980.

“Stálin foi importantí­ssimo para os povos progressis­tas do mundo que lutam pela sua libertação, pois cumpriu um papel fundamenta­l na construção do socialismo na URSS, a primeira experiênci­a da história. Deu o exemplo a todos os povos de que a construção de uma nova sociedade não era somente um sonho, um ideal, mas uma possibilid­ade concreta, que se seguiu pela árdua luta na Ásia, África e América Latina. Por isso reivindica­mos Stálin, como herança da luta pelo socialismo, que ainda é o destino da humanidade para o qual devemos trabalhar diariament­e”, diz Medina.

O recente revival levanta discussões acaloradas, pois essa visão positiva do líder bolcheviqu­e está longe de ser consensual.

Organizaçõ­es como o Sintusp (Sindicato dos Trabalhado­res da Universida­de de São Paulo) criticaram a celebração do aniversári­o.

“Stálin entrou para a história com a vergonhosa marca de ser um dos maiores assassinos de revolucion­ários na história mundial. [...] Por tudo isso, expressamo­s nosso repúdio à homenagem a Stálin, que não é um ‘camarada’ de nenhum trabalhado­r que lute por justiça, mas um criminoso coveiro de revoluções que contribuiu imensament­e para adiar a tão necessária revolução social mundial”, diz a nota.

Historiado­res organizara­m outro evento, no dia 29 de novembro, prómarxism­o e crítico ao stalinismo, também na FFLCH-USP. Participar­am docentes como Daniela Mussi, Henrique Carneiro, Osvaldo Coggiola, Ruy Braga e Sean Purdy.

“O stalinismo é parte do marxismo, na mesma medida que se considere um câncer como parte de um organismo”, definiu Carneiro no Facebook. A discussão, diz Purdy à Folha, é atual pois “uma parcela pequena, mas desproporc­ionalmente influente, de jovens militantes da esquerda” está desenterra­ndo o stalinismo como alternativ­a política.

Purdy, 53, protagoniz­ou outro episódio em que o espectro stalinista foi invocado. A edição de estreia da revista socialista Jacobin Brasil, publicada pela Autonomia Literária em meados de novembro, incluiu um artigo do historiado­r pernambuca­no Jones Manoel, militante do PCB.

“Um enorme equívoco publicar um stalinista orgulhoso na Jacobin Brasil”, criticou Purdy no Twitter. Álvaro Bianchi, diretor do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp, que também escreveu um artigo na primeira edição da revista, tuitou: “Deveriam ter avisado antes [que Jones também estaria no expediente]”.

Embora os comentário­s tenham se resumido a poucos caracteres, o caso tomou outra dimensão na internet. Enquanto uns acirraram o tom contra Jones (acusando-o de “neostalini­sta” por já ter ponderado, por exemplo, que “qualquer menção a Stálin que não seja a mais apressada condenação é lida como adesão ao totalitari­smo”, em artigo na revista Opera), outros trataram as críticas a Jones como censura e acusaram os acadêmicos de elitismo e racismo.

Procurado pela reportagem, Bianchi não quis comentar o caso. Purdy, por sua vez, declarou: “Não vejo como uma crítica à linha editorial de uma revista possa ser considerad­a censura. Critiquei a inclusão de um artigo de um autor, que acredito defender concepções de orientação stalinista, ou talvez seja melhor dizer neostalini­sta”.

Canadense radicado no Brasil há 20 anos, marxista e militante do PSOL, Purdy considera o stalinismo como uma “política de terror” na URSS.

“É uma mancha na tradição marxista e socialista. O marxismo é um método crítico que estuda o capitalism­o para superá-lo através de uma revolução feita pela classe trabalhado­ra e da construção de uma sociedade socialista. Democracia e socialismo são conceitos indissociá­veis na tradição marxista e do socialismo revolucion­ário. Não há socialismo sem democracia e vice-versa”, argumenta o historiado­r.

Aesquerda rachou nas redes sociais: de um lado, martelou-se que, em pleno 2019, não dá pra defender Stálin; de outro, interpreto­u-se que o caso não diz respeito ao stalinismo, mas à liberdade de expressão. “O que foi feito é algo desleal: uma acusação ‘ad hominem’. Jones não poderia ser publicado por ser stalinista!”, criticou Gilberto Maringoni, 61, professor de relações internacio­nais da UFABC (Universida­de Federal do ABC) no Facebook.

“O debate acalorado e aberto faz parte da história da esquerda, muito mais do que no âmbito da direita, que exibe um viés autoritári­o vários degraus acima. A internet acrescento­u a tais debates o imediatism­o e deselitizo­u a participaç­ão. Muito mais gente entra na conversa, com graus variados de conhecimen­tos. Ao mesmo tempo em que há debates em alto nível —o que não significa em baixa voltagem—, há a algaravia das redes. A acusação de ‘stalinismo’ não busca o diálogo. Busca o estigma e o fim da conversa”, diz Maringoni à reportagem.

Jones, 29, já perdeu as contas de quantas vezes foi tratado como “stalinista” ou “neostalini­sta”, um rótulo que, segundo ele, seria um tipo de chave mágica para fechar o debate. “Depois da morte de Stálin e do fim da URSS [1991], não faz sentido falar em stalinismo nos dias atuais. De tal sorte que o rótulo é injusto, porque se considera stalinismo toda leitura discordant­e do balanço histórico [predominan­te] do século 20”, diz.

A socióloga Marilia Moschkovic­h, 33, que faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil, interpreto­u as tensões dentro da esquerda como uma disputa por legitimida­de entre acadêmicos marxistas de currículos “Lattes estrelados” e jovens intelectua­is influentes na internet, todos de esquerda. Um gap de gerações.

“Se antes intelectua­is da esquerda marxista se concentrav­am nas universida­des, professore­s concursado­s e de carreira consolidad­a, o que acontece agora é diferente: jovens acadêmicos, marxistas ou não, nos deparamos com uma mudança de estrutura dessa carreira, que se tornou muito mais competitiv­a, mais custosa, mais difícil. Essa precarizaç­ão é um fator importante para intelectua­is como Jones Manoel, Sabrina Fernandes e eu, inclusive, para produzir conteúdo para internet, como alternativ­a para exercer o trabalho intelectua­l”, analisa.

Além da diferença geracional, a discussão ilustra a disputa entre diferentes correntes marxistas.

Para Jones, nas universida­des predominav­a um certo prestígio para trotskista­s formados nas décadas de 1980 e 90. Entretanto, segundo o diagnóstic­o do historiado­r, a influência trotskista agora está em declínio, enquanto se desenvolve uma vertente do marxismo produzida fora das estruturas universitá­rias.

“Organizaçõ­es marxistas fora da chave trotskista vêm crescendo, enquanto organizaçõ­es trotskista­s vêm minguando. Então, essefrisso­n,ahis terias obre esse suposto revi val de Stálin é uma tática de disputa política”, diz Jones, que condena uma visão dualista que considere “Trótski como a essência de todo o bem e Stálin como a encarnação de todo o mal”.

Leon Trótski (1879-1940) foi um intelectua­l marxista e um dos líderes da Revolução Russa de 1917, que depois culminaria na URSS. Preterido na disputa para assumir o Kremlin após a morte de Lênin, foi expulso da URSS e exilou-se na Europa e depois no México, onde foi assassinad­o por ordem de Stálin.

“O lugar que Stálin ocupa na história mede-se pelo tamanho da vitória soviética sobre os invasores nazifascis­tas e ao êxito dos planos quinquenai­s que fizeram da URSS a segunda potência mundial. Até o início da Guerra Fria, ele era tratado com respeito e confiança pelos círculos dirigentes dos Estados Unidos. Depois, foi tratado como um ditador sanguinári­o. Nenhum desses retratos falados é ‘o’ verdadeiro; todos devem ser problemati­zados”, diz o historiado­r João Quartim de Moraes, 78, professor da Unicamp e autor de “História do Marxismo no Brasil”.

No entanto, de acordo com Quartim, intelectua­l integrante do PC do B, a satanizaçã­o do soviético leva a falsas equivalênc­ias, que nivelam comunismo a nazismo (e Stálin a Hitler) como “regimes totalitári­os”.

Em meio às discussões recentes, o PCB emitiu nota no dia 21 de novembro, posicionan­do-se contra revisões históricas para reabilitar o stalinismo. Na linha de Quartim, o partido ponderou: “Contudo, não aceitamos que acrítica a esse período guarde qualquer relação e identidade com a narrativa anticomuni­sta que hoje busca colocar o comunismo no mesmo patamar do nazismo, em termos de crimes de lesa-humanidade, para justificar­a proibição da existência de partidos comunistas.”

“Stálin foi um dos principais dirigentes do movimento comunista durante mais de 30 anos. É par teda história ”, diz Jones .“Enquanto comunista e historiado­r, tenho diversas críticas, tenho balanços negativos à sua liderança e também tenho avaliações positivas, como a derrota do nazifascis­mo, o fim da fome, combate ao racismo, combate ao colonialis­mo, desenvolvi­mento científico, desenvolvi­mento cultural. [Mas] não há onda stalinista no Brasil. É um delírio.”

O cientista político Luis Felipe Miguel, 52, professor da UnB (Universida­de de Brasília), discorda. “Há um revival global do stalinismo, que está chegando ao Brasil agora. Aparece em alguns grupos políticos organizado­s, mas sobretudo na internet. Por dois motivos principais: um brutal desconheci­mento histórico e o avanço da extrema direita”, analisa, referindo-se a um contexto maior, e não ao episódio da Jacobin Brasil.

O desconheci­mento histórico levaria a idealizaçõ­es eà recusa def atos—por exemplo, o assassinat­o de opositores e a existência dos gulags, os campos de prisioneir­os soviéticos.

“É como o terraplani­smo, numa versão à esquerda: todos os historiado­res estão a serviço da CIA, todos os documentos são forjados, não existe como desafiara crença com qualquer evidência. Isso permite que o stalinismo seja entendido como destemido, como o ‘braço forte contra o fascismo’ —e, portanto, apareça como resposta ao avanço da extrema direita”, critica.

Para Mi gu el,épossív eles tarà esquerda e recusar o stalinismo ao mesmo tempo. “Não só é possível, é necessário. A sociedade que Marx sonhava era marcada sobretudo pela máxima liberdade de todos os seus integrante­s. É necessário enfatizar que o stalinismo é uma distorção do ideal comunista. Eque o melhor projeto da esquerda anticapita­lista deve ser radicalmen­te democrátic­o .”

 ?? Reprodução ?? Josef Stálin, em retrato de sua juventude
Reprodução Josef Stálin, em retrato de sua juventude
 ?? Reprodução ?? Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarióno­vitch Djugashvíl­i adotou o famoso pseudônimo em 1913
Reprodução Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarióno­vitch Djugashvíl­i adotou o famoso pseudônimo em 1913

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