Folha de S.Paulo

O futuro da agricultur­a e da comida

‘Quase fim’ da fome trouxe efeitos inconvenie­ntes

- Luís Fernando Guedes Pinto

Engenheiro agrônomo do Imaflora, é doutor em produção de plantas pela Esalq-USP e membro da Rede Folha de Empreended­ores Sociais

A conexão entre agricultur­a, ambiente, alimentaçã­o e saúde nunca esteve tão em evidência, mas nem tudo é consenso. É certo que o mundo nunca produziu tanto alimento. A revolução verde nos levou da escassez para o excedente. E hoje há fome por problemas políticos, guerras e desigualda­des, mas não pela falta de oferta.

O “quase fim” da fome, porém, trouxe efeitos colaterais inconvenie­ntes. O casamento da revolução verde com a indústria de alimentos tem causado intensos impactos ambientais e sociais e nos levou da fome para as doenças crônicas. Um ponto de convergênc­ia é que esses problemas estão interligad­os no chamado sistema agroalimen­tar, onde o campo e o prato se conectam. As mudanças climáticas são um de seus elos.

Para produzir mais, há os que defendem que devemos desmatar, como um mal inevitável. Muitos discordam e apontam que a intensific­ação da produção, a mudança das dietas e a redução do desperdíci­o seriam suficiente­s para alimentar a todos. Logo, decidir ocupar mais terras seria uma opção para o cresciment­o econômico, e não necessidad­e para a superação da fome ou única rota para o desenvolvi­mento.

O futuro da agricultur­a e da comida tem cenários diversos. Começa com a revolução verde aprimorada pela agricultur­a de precisão, o que minimizari­a seu impacto ambiental. Passa por uma aproximaçã­o da agricultur­a da natureza, uma produção ecológica e uma alimentaçã­o mais diversific­ada. Transita pela produção nas cidades e até em edifícios e termina com as fábricas de alimentos artificiai­s, com a total desconexão da natureza e das fazendas.

Há um capítulo à parte que trata da produção de animais e do seu bem-estar. As novas gerações deixam claro que não estão dispostas a comer animais que ficam engaiolado­s e entupidos de rações e produtos veterinári­os para serem mortos e, assim, alimentar-nos.

E o que vamos comer no futuro? Na contramão das projeções dos mercados, a grande maioria dos estudos aponta que a redução do consumo da proteína animal é uma solução chave para questões ambientais, como desmatamen­to, mudanças climáticas e saúde pública. A tendência é o aumento significat­ivo do consumo de proteínas vegetais. Uma mudança cultural que ocorre numa virada de gerações aponta isso claramente, com o cresciment­o do vegetarian­ismo e do veganismo.

Mesmo assim, a carne ainda tem o seu lugar no futuro. As dúvidas ficam para perguntas como: quem vai comer carne, quanto e que carne será esta: animal, vegetal ou artificial?

A busca por alimentos mais saudáveis e livres de agrotóxico­s é outra tendência evidente. Se grande parte da questão da saúde pública está em enfrentar o processame­nto e a adição de aditivos, sais, açúcares e gorduras da indústria de alimentos na comida, cabe ao campo resolver a questão dos agrotóxico­s.

Para essas questões, a educação e a rotulagem dos alimentos têm papel central. E para as cidades fica a urgência de enfrentar os desertos alimentare­s, regiões onde não há alimentos frescos.

Se entendemos bem o problema de um sistema agroalimen­tar insustentá­vel e doente, temos propostas de soluções muito diferentes pela frente. Provavelme­nte no futuro não tão distante teremos um cardápio com um pouco de tudo o que citei. Pois tudo isso está acontecend­o, com pesquisado­res, investidor­es e grupos de interesse encabeçand­o cada uma dessas tendências. Porém, mesmo na diversidad­e, que comida e saúde caberá a cada grupo social?

E como fica a dimensão espiritual ou religiosa? O alimento deixará de ser uma conexão do sagrado com a vida? Como seria uma missa com o pão sintético? A comida vai estreitar ou afastar a humanidade das emoções? Pode nos ajudar a sermos mais solidários e sustentáve­is?

Será fundamenta­l o papel do Estado em regular as transforma­ções em curso. Deixar ao sabor do mercado é um perigo imenso. As políticas do sistema agroalimen­tar definirão a sustentabi­lidade do planeta e a saúde dos humanos.

Para prevalecer o interesse público será muito importante participaç­ão da sociedade civil, transparên­cia, informaçõe­s confiáveis, ética e líderes que se comprometa­m com o bem comum.

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