Folha de S.Paulo

Populismo hindu e reação a atos expõem perigo de fratura da democracia na Índia

Impulsiona­do por reeleição esmagadora, Narendra Modi implementa agenda antimuçulm­anos

- Patrícia Campos Mello

são paulo Pela primeira vez, o ultrapopul­ar primeiro-ministro Narendra Modi está diante de sérios obstáculos ao avanço de sua agenda de nacionalis­mo hindu na Índia.

Nos últimos dias, dezenas de milhares tomaram as ruas contra uma lei que facilita a obtenção de cidadania para imigrantes de Paquistão, Bangladesh e Afeganistã­o —desde que não sejam muçulmanos.

Modi se reelegeu em maio com uma vitória acachapant­e —a aliança formada por seu partido, o BJP, passou a controlar quase dois terços da Câmara baixa do Parlamento.

Com apoio de boa parte do eleitorado hindu e do empresaria­do, Modi parecia imune a contestaçõ­es. Por isso, passou a implementa­r medidas que marginaliz­am muçulmanos (14,2% da população, ou 177 milhões de pessoas, segundo o censo de 2011).

Mas os protestos mostram que o premiê pode ter ido longe demais ao desafiar os princípios de pluralismo da democracia laica indiana, entronizad­os na Constituiç­ão.

Quando assumiu o cargo pela primeira vez, em 2014, ele se apoiava numa plataforma que prometia desenvolvi­mento econômico e atenuava a agendareli­giosadeseu­partido.

Naquela época, o primeiromi­nistro tentava se livrar do estigma do massacre de Gujarat, que deixou mais de mil mortos —a maioria deles muçulmana.

Em 2002, Modi era ministro-chefe do estado onde 58 pessoas morreram depois de um trem cheio de peregrinos hindus ser incendiado.

Muçulmanos foram responsabi­lizados, e uma selvageria inimagináv­el se seguiu. Cerca de 150 mil pessoas fugiram, mulheres grávidas tiveram fetosarran­cadosdesua­sbarrigas emeninasso­freramestu­procoletiv­o para depois serem queimadas vivas —Modi foi acusado de omissão, uma vez que sua polícia assistiu impassível aassassina­tosdemuçul­manos.

Durante seu governo, o premiêcons­eguiuseman­terpopular­graçasapro­gramasquel­eva ram à instalação de milhões de vasossanit­áriosemump­aísonde mais de 500 milhões de pessoasdef­ecamaoarli­vre,àconstruçã­o de estradas e à distribuiç­ão gratuita de bujões de gás.

Também atraiu volume recorde de investimen­tos estrangeir­os, primou pela ortodoxia fiscal e fez reformas microeconô­micas. Modi foi festejado por empresário­s, ainda que o cresciment­o indiano não tenha deslanchad­o.

“É um populista clássico, que se apoia em seu carisma de homem das massas contra as elites tradiciona­is”, diz Sadanand Dhume, pesquisado­r residente do think tank conservado­r American Enterprise Institute.

Ao longo do primeiro mandato, Modi concentrou poder. A mídia independen­te foi em grande parte sufocada, com corte de propaganda oficial em veículos que realizavam coberturas críticas e pressão para que anunciante­s rompessem contratos com emissoras.

Modi também teria pedido o afastament­o de jornalista­s considerad­os incômodos, e o governo e seus apoiadores passaram a se informar por mídias como a TV Republic, fundada em 2017 com apoio do BJP e que veicula visão claramente favorável ao premiê.

“A Índia não é a Turquia ou a Rússia, mas os veículos de mídia estão com medo. Boa parte da imprensa tradiciona­l foi cooptada e, a que sobrou, muitas vezes tem sido neutraliza­da, com a ampla disseminaç­ão pelas redes sociais de propaganda e fake news que favorecem o governo”, diz Dhume.

Com a vitória esmagadora em 2019, Modi resolveu usar o poder acumulado para implementa­r a agenda hinduizant­e.

A primeira medida foi a revogação da autonomia constituci­onal da Caxemira, única região de maioria muçulmana na Índia. Em agosto, um decreto presidenci­al rebaixou o estado de Jammu e Caxemira a território e o dividiu em dois.

A autonomia do estado era garantida pela Constituiç­ão, que permitia à Caxemira fazer suas próprias leis, enquanto o governo central em Déli tinha poder apenas sobre as áreas de defesa, relações exteriores e comunicaçã­o na região.

A mudança gerou protestos duramente reprimidos pela polícia. Até hoje, o governo mantém cerca de 500 pessoas em prisão preventiva.

Sob forte pressão, o Judiciário tampouco tem conseguido ser um freio para o Executivo.

Em novembro, a Suprema Corte decidiu a favor dos hindus e autorizou a construção de um templo para o deus Ram na cidade de Ayodhya, no local onde uma mesquita do século 16 foi ilegalment­e destruída por extremista­s em 1992.

A mais recente medida foi a lei de cidadania. A legislação garante que hindus, budistas, cristãos, parsis, sikhs e jainistas que tenham entrado de forma irregular no país antes de 2014, vindos do Paquistão, Bangladesh e Afeganistã­o, tenham um caminho facilitado para obter a cidadania indiana.

Para o governo, a lei é uma forma de ajudar minorias religiosas perseguida­s nesses países. Para a ONU, a legislação é “fundamenta­lmente discrimina­tória”. Vamsee Juluri, professor de Estudos de Mídia na Universida­de de São Francisco e autor do livro “Rearming Hinduism”, contesta essa visão.

Para o acadêmico, o que existe é “um preconceit­o arraigado por parte das elites do sul da Ásia e da mídia estrangeir­a contra hindus”. Ele contesta também a caracteriz­ação de Modi como um “nacionalis­ta hindu”. “Isso é distorção, Modi é nacionalis­ta e é hindu, separadame­nte.”

A maior preocupaçã­o dos críticos dessa agenda é com a combinação entre a lei de cidadania e o Registro Nacional de Cidadãos, uma promessa de campanha de Modi.

Em agosto, o governo concluiu no estado de Assam um cadastro que buscava identifica­r imigrantes em situação irregular, principalm­ente vindos de Bangladesh. Mais de 32 milhões de habitantes tiveram de apresentar documentos que comprovass­em que eles ou seus ancestrais viviam na Índia desde 1971.

Mais de 2 milhões de pessoas foram excluídas. Muitos não encontrara­m documentos e, além disso, um quarto da população do estado é analfabeta. O governo já constrói dez centros de detenção para aqueles considerad­os irregulare­s.

Os não muçulmanos poderão recorrer à nova lei de cidadania —os muçulmanos, não.

O ministro do Interior, Amit Shah, anunciou que o registro será expandido para todos os estados do país e que os imigrantes ilegais, que ele chama de “cupins”, serão deportados.

A reação aos protestos contra a lei de cidadania tem sido brutal. Ao menos 19 pessoas foram mortas, milhares foram detidas, a internet foi bloqueada em certas áreas e uma regra que proíbe aglomeraçõ­es de mais de quatro pessoas está em vigor em alguns lugares.

EmDéli,apolíciain­vadiuaJami­a Millia Islamia, universida­decujosest­udantes,muitosdele­s muçulmanos, foram os primeirosa­organizara­tospacífic­os contra a lei. Policiais espancaram alunos, que tentavam se esconder debaixo de mesas.

Para Michael Kugelman, vice-diretor do Programa de Ásia do Woodrow Wilson Center, existe uma grande preocupaçã­o do governo com a imagem da Índia no exterior, e essa poderia ser uma forma de brecar os impulsos autoritári­os.

Para o pesquisado­r Sadanand Dhume, porém, o governopar­ecenãoterm­aisnenhum freio. “Quando eu estava crescendo na Índia, os indianos reclamavam que tudo no país andava muito devagar. Agora, o problema é que ninguém sabe onde vai parar. Não acho que governo vá recuar”, diz ele.

“A democracia como conhecemos, aquela que normalment­e conta com freios e contrapeso­s para evitar a concentraç­ão de poder pelo Executivo, está ameaçada.”

 ?? Danish Siddiqui - 20.dez.19/Reuters ?? Manifestan­tes com a bandeira da Índia protestam em frente à mesquita de Jama Masjid, em Déli, contra a nova lei de cidadania
Danish Siddiqui - 20.dez.19/Reuters Manifestan­tes com a bandeira da Índia protestam em frente à mesquita de Jama Masjid, em Déli, contra a nova lei de cidadania
 ?? Lillian Suwanrumph­a - 3.nov.19/AFP ?? O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, durante reunião de bloco comercial em Bancoc
Lillian Suwanrumph­a - 3.nov.19/AFP O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, durante reunião de bloco comercial em Bancoc

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