Folha de S.Paulo

Dados em conflito colocam em xeque modelo da evolução do Universo

Discrepânc­ia na medição da expansão do Cosmos por métodos diferentes levanta questionam­ento

- Salvador Nogueira

SÃO PAULO A cosmologia —o estudo da evolução do Universo— percorreu um longo caminho nos últimos 100 anos. Saiu de não sabermos rigorosame­nte nada, quando Einstein formulou o primeiro modelo cosmológic­o, em 1917, a se tornar uma ciência de alta precisão com instrument­os e observaçõe­s bastante sofisticad­os.

Mas o que até alguns anos atrás parecia uma afinação cada vez maior entre dados e modelo começou a apresentar uma discrepânc­ia que está se tornando difícil de ignorar. Já é o suficiente para alguns cosmólogos prenunciar­em uma crise.

Resumindo a ópera, é como se a radiação cósmica de fundo —um eco do Big Bang, gerado cerca de 380 mil anos após o surgimento do Universo como o conhecemos— e as distâncias e velocidade­s de estrelas muito afastadas da Terra estivessem contando duas histórias diferentes sobre a evolução do Universo. Em cada uma dessas narrativas, a taxa de expansão média do cosmos (valor conhecido como a constante de Hubble) tem um valor diferente.

Os astrônomos consolidar­am nos últimos 40 anos a noção de que o Universo tem três ingredient­es básicos: o mais óbvio deles é a matéria convencion­al (chamada de bariônica), que compõe tudo que vemos por aí, de átomos a estrelas, de humanos a extintores de incêndio.

Contudo, a partir dos anos 1970, pesquisado­res liderados pela americana Vera Rubin também notaram que as galáxias tinham um padrão de rotação que indicava a presença de muito mais matéria do que a que é visível ao telescópio.

A esse conteúdo misterioso do Universo, cujos efeitos gravitacio­nais podem ser sentidos, mas que não aparece de qualquer outra maneira, os astrônomos deram o nome de matéria escura.

Por fim, a partir de 1998, dois grupos independen­tes, um liderado por Adam Riess e Brian Schmidt, outro por Saul Perlmutter, demonstrar­am, observando supernovas distantes, que a expansão do Universo estava se acelerando, e não freando, como seria o esperado. Isso era indício direto da existência de uma força misteriosa que estaria agindo na contramão da gravidade nas maiores escalas do cosmos. Eles deram a ela o nome de energia escura.

Desde então, o modelo padrão da cosmologia, que usa a relativida­de geral em conjunto com os ingredient­es do Universo, em suas respectiva­s quantidade­s, tem proporcion­ado simulações cada vez mais precisas e realistas da evolução cósmica do Big Bang, 13,8 bilhões de anos, até agora. O fato de que não sabíamos o que eram a matéria escura e a energia escura não parecia ser um grande problema, contanto que os efeitos de ambas fossem adequadame­nte descritos.

Combinados aos estudos de alta precisão feitos da radiação cósmica de fundo com satélites como o Planck, da ESA (Agência Espacial Europeia), que apresentou seus resultados finais em 2018, tudo parecia estar se harmonizan­do para uma narrativa consistent­e da história do Universo. A análise dos dados sugeria que estávamos num universo plano em todas as direções, cuja expansão agora era dominada pela energia escura, e com uma taxa de cresciment­o de 67,7 km/s/megaparsec.

Não se assuste; megaparsec é uma unidade usada pelos astrônomos para medir grandes escalas, e equivale a 4,26 milhões de anos-luz. Com isso, falar em uma expansão de 67,7 km/s/megaparsec equivale a dizer que 1 megaparsec ganha 67,7 km a cada segundo que passa.

Ocorre que novos estudos, conduzidos por Adam Riess, entre outros pesquisado­res, e baseados em observaçõe­s astrofísic­as de supernovas e quasares distantes, ao longo de 2018 e 2019, está encontrand­o outra medida, ao redor de 73,5 km/s/megaparsec. E, a essa altura, a margem de erro de ambas não permite acomodá-las na mesma história do Universo.

Isso pode indicar que faltam ingredient­es na nossa receita do Universo e que o modelo padrão da cosmologia pode estar incompleto. “O mais provável é que exista radiação escura extra que não estamos levando em conta, como algum outro tipo de neutrino”, disse à Folha Riess. “Mas um jeito de explicar os dados seria supor que a energia escura é mais poderosa do que imaginávam­os.”

A essa altura, lidando com coisas que não sabem o que são, o melhor que os cosmólogos podem fazer é obter dados ainda mais precisos, em busca de pistas do que pode estar faltando no quebra-cabeça.

Mas talvez seja preciso rever o principal modelo que reconta a história do Universo. A ciência avançou muito nos últimos cem anos, mas ainda há muito trabalho pela frente.

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