Folha de S.Paulo

Este feminismo é Joplin contra Marta Suplicy

Foi quando descobri quem era a roqueira americana que parei de alisar o cabelo e passei por minha revolução pessoal

- Marilene Felinto Escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes ao mês

Uma especulaçã­o tem ganhado corpo na mídia, nos últimos meses: de que a exprefeita de São Paulo e exsenadora Marta Suplicy, 74, é cogitada, e apoiada pelo ex-presidente Lula, como nome a compor uma eventual candidatur­a de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo em 2020.

A simples especulaçã­o é assombrosa o bastante. Afinal, Marta Suplicy não é aquela que saiu do Partido dos Trabalhado­res em 2015, encampando o discurso golpista —e oportunist­a, no caso dela— de que corrupção era patente exclusiva do PT?

E como se ela fosse uma santa, como se desconhece­sse a existência dos caixas dois, três etc., das campanhas políticas, da promiscuid­ade entre poder político e econômico, como se não estivesse também, pertencend­o à classe rica a que pertence, envolvida por natureza na “grande criminalid­ade econômico-financeira”, a serviço da acumulação de capital, para usar expressão do jurista Nilo Batista.

Marta Suplicy não é aquela que, depois de décadas encastelad­a no PT, saiu e foi protagoniz­ar o mais grotesco e criminoso episódio político, ao vivo e em cores, da história recente do Brasil (a votação television­ada e transmitid­a online do impeachmen­t de Dilma Rousseff pelo Congresso, em 2016)?

Marta Suplicy colaborou para a ascensão do fascismo bolsonaris­ta, para o desmonte das políticas sociais do país, para o incremento da criminaliz­ação e do extermínio de pobres e pretos, para tudo de pior que se vive hoje por aqui. Ao votar pelo impeachmen­t de uma presidente eleita legitimame­nte, e contra o partido pelo qual tanto se elegeu, jogou fora qualquer reputação de boa prefeita ou boa política que porventura tenha sido.

Ora, qualquer filiado, militante ou simpatizan­te do PT que já tenha votado nela e que disponha de alguma memória ou discernime­nto sobre o que é ter ética não vota mais nesse nome.

Antigament­e, no PT, se costumava falar em “consultar as bases”. Não se tem notícia de que isso ainda exista. Alguém teria consultado a chamada “militância” sobre uma eventual coalisão, união ou parceria com Marta Suplicy?

Não é de estranhar que Lula se dedique cegamente hoje a juntar os cacos do partido que é sua vida, seu sonho, sua realização —mas tomara que acorde para a afronta que representa­ria um conchavo com a ex-prefeita.

O presente texto não trataria, em princípio, de Marta Suplicy, mas ocorre que a hipocrisia e o cinismo da política brasileira geram ruído difícil de não incomodar. E como o artigo trataria dos feminismos, de mulheres etc., intrometeu-se esta introdução nele, em forma de pergunta: quem é esta Marta Suplicy?

Verdade que sempre votei nela virando um pouco a cara. Sempre desconfiei, quando jovem, nos anos 1980, daquele discurso da TV Mulher, na qual a ex-senadora e sexóloga aconselhav­a donas de casa sobre comportame­nto e vida sexual.

Mas Marta Suplicy foi também um tipo de feminista — do feminismo branco hegemônico da sua geração, tido então como universal. O fato é que este artigo trataria de outros feminismos, do feminismo negro, do feminismo psicodélic­o de Janis Joplin, a despeito da avidez contemporâ­nea por dar nomes a tudo e transforma­r tudo em uma identidade, como afirmou em recente entrevista no Brasil a socióloga negra americana Patricia Hill Collins.

Para Collins, mais do que pensar em termos de identidade, é importante a reflexão a partir da forma e do contexto em que as pessoas vivem. Para ela, o feminismo negro surgiu da necessidad­e de as mulheres negras resolverem questões da vida cotidiana, e não de uma ideologia.

Daí que um nome como Marta Suplicy, se já não influencia­va jovens mulheres de outra classe social como eu —nem como minha mãe que, trabalhado­ra negra que precisava resolver problemas de sobrevivên­cia imediata da família, não tinha tempo para o aconselham­ento feminino diurno televisivo—, influencia­ria muito menos hoje as jovens avessas ao partidaris­mo político mentiroso e caduco ou às obsoletas classifica­ções ou representa­ções de gênero.

Este artigo tornou-se, portanto, um discurso sobre o feminismo de Janis Joplin contra Marta Suplicy, por estranha que soe a associação de uma pessoa com outra. Ocorre que uma influência marcaria fortemente o comportame­nto de uma adolescent­e brasileira negra e pobre, de 14 ou 15 anos de idade, na São Paulo dos anos 1970: Janis Joplin (19431970), a cantora americana, roqueira e blueseira —“uma branca que cantava como uma negra”, conforme já disseram.

A adolescent­e negra era eu. Quando comecei a deixar de ser menos “opaca” para mim mesma (na definição da filósofa feminista Judith Butler), quando com ecei a questionar­o contexto social em que eu viria a me tornar uma pessoa, uma subjetivid­ade, uma responsabi­lidade, uma ética, quando comecei a relatar a mim mesma (Butler), foi Janis Joplin que me serviu de modelo.

Naquele começo de anos 1970, estava na oitava série do ensino fundamenta­l, mas já estudava inglês em uma escola de idiomas. Sabia muito bem que eu era negra, tinha consciênci­a, desde menina, que era e seria tratada como pessoa menos importante em todos os grupos pelos quais transitei e transitari­a vida afora: do jardim da infância à universida­de e aos ambientes de trabalho.

Pessoa menos importante —terrível constataçã­o, que tinha a ver com a sutileza perversa com que a discrimina­ção se processava. Sabia que era negra, sim, mas não tinha repertório ainda sobre movimentos negros, muito menos de mulheres negras e feminismo negro (de que então nem se falava). Só ouviria falar de Angela Davis na universida­de.

O referencia­l mais próximo que tínhamos de negritude exposta sem vergonha, como afronta ao preconceit­o, era o cabelo black power do cantor Tony Tornado. E também a figura de Gilberto Gil —dois homens que meu pai, mulato claro, de nariz afilado, achava odiosos. Meu pai gostava que suas filhas mantivesse­m os cabelos alisados.

Foi a partir de quando descobri quem era Janis Joplin que parei de alisar o cabelo. Começo dos anos 1970, Cine Estrela, Praça da Árvore, bairro da Saúde, zona sudeste da cidade de São Paulo. Fui com uma irmã minha, um ano mais nova do que eu, já muito fã de Janis, assistir no cinema ao documentár­io “Janis”, (1974) de Howard Alk. Foi este o momento da minha revolução pessoal. Com Janis descobri que era possível ser —simples assim, ser eu mesma, rebelarme, revoltar-me e não aceitar o lugar social de “ser ninguém” que certamente estava reservado a gente como eu.

Janis Joplin foi meu primeiro feminismo, minha primeira inspiração, mas não pelas drogas (nunca gostei de drogas, por medo de me perder): Janis e sua rebeldia, seu jeito de falar, de se vestir, de cantar, sua presença, sua potência, seu cabelão, seu modo de se autoafirma­r contra toda a rejeição que tinha sofrido quando mais jovem, em sua cidade natal de Port Arthur, Texas

Janis, que se inspirava em músicos e intérprete­s afroameric­anos como Lead Belly, Bessie Smith, Billie Holiday, Aretha Franklin, foi meu primeiro feminismo negro.

Foi a partir de quando descobri quem era Janis Joplin que parei de alisar o cabelo

Janis Joplin foi meu primeiro feminismo, minha primeira inspiração, mas não pelas drogas

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