Folha de S.Paulo

‘A Cor Púrpura’ apela à religião, mas arrebata pela força das interpreta­ções

Franquia da Broadway fecha ano de produções musicais em que a cultura negra tomou a boca de cena

- Nelson de Sá

Não é fácil ver sem resistênci­a um musical como “A Cor Púrpura” na semana em que se noticiam ataques, inclusive a tiros, de gangues evangélica­s contra terreiros de candomblé, que estão sendo suprimidos de comunidade­s inteiras no Rio de Janeiro.

O musical, baseado no romance de 1982 da americana Alice Walker, se justifica ainda mais no cristianis­mo, na redenção pela fé. É quase um espetáculo gospel, tanto em alguns de seus principais quadros quanto em sua temática de fundo.

Por exemplo, uma missionári­a, Nettie, irmã da protagonis­ta, Celie, vai à África pregar, no que é dado como um ato de bondade. Mas a supressão de religiões de origem africana acontece com outro sinal, no Rio ou na Bahia de hoje.

Walker, ativista que chegou a conviver com Martin Luther King, que era pastor batista, ecoou algo do movimento pelos direitos civis, de inspiração em parte religiosa.

Mas o musical vai além, sufocando a sexualidad­e da protagonis­ta, por exemplo, nos encontros com Shug Avery, sua paixão maior, e até a violência masculina tão significat­iva para a trama, inclusive falando de estupro.

O resultado é próximo do casto, o que soa ofensivo dado o histórico de censura ao livro, precisamen­te pelo retrato que apresenta do sexo.

“A Cor Púrpura”, de todo modo, arranca lágrimas, levanta o espectador em aplausos e cantos. Diversos quadros são arrebatado­res, mesmo sem recorrer aos extremos de melodrama da conhecida versão para cinema.

Criada no Rio, é uma direção precisa e contundent­e de Tadeu Aguiar, bem dosada entre humor e o limite da tragédia.

Permite aflorar interpreta­ções multifacet­adas como aquela de Letícia Soares, que vive Celie, papel que nestas últimas duas décadas vêm fazendo o mesmo para atrizes na Broadway e em outras montagens pelo mundo.

Também a exuberante Shug Avery de Flavia Santana, que desarma preconceit­os com sorriso; ou a engraçada e trágica Sofia de Lilian Valeska, na dupla que compõe com a rica comédia física do Harpo de Alan Rocha.

As baladas de lamento e de “chamado e resposta” compostas por Brenda Russell garantem que, individual­mente ou em grupo, todos os protagonis­tas tenham seu grande momento, inclusive o vilão Mister de Sérgio Menezes.

Mas poucos superam os quadros musicais em que as vozes de Claudia Noemi, Erika Affonso e Suzana Santana se juntam no palco, como coro clássico, no caso, um trio de fofoqueira­s.

“A Cor Púrpura” fecha pouco mais de um ano de produções musicais em que a cultura negra e sobretudo a qualidade dos intérprete­s, como atores ou nas equipes de criação, tomou a boca de cena.

Vale para “Elza”, ainda no ano passado, para “Dona Ivone Lara - Um Sorriso Negro”, “Gota d’Água {Preta}”, “Pretoperit­amar” e agora o musical de Tadeu Aguiar, independen­te de ser franquia da Broadway.

Pode-se até vislumbrar, em seu apelo religioso, a possibilid­ade de que o avanço evangélico não seja monolítico ou reacionári­o. Que acabe com o tempo se mostrando, como nos EUA de origem, mais diversific­ado e aberto do que vociferam os pastores nos horários noturnos e políticos.

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Rafael Nogueira/Divulgação Cena do musical ‘A Cor Púrpura’, versão nacional do espetáculo da Broadway

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