Folha de S.Paulo

O lugar de fala e o fascismo identitári­o

Autor critica caráter autoritári­o de discursos identitári­os, que se manifestar­iam como ‘fascismo de esquerda’. A ideia de lugar de fala correspond­eria à ânsia de calar a diferença numa lógica perversa e paradoxal de ‘inclusivid­ade excludente’

- Por Antonio Risério Poeta, romancista e antropólog­o, autor de ‘A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros’ (ed. 34) e ‘Sobre o Relativism­o Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitári­a’ (Topbooks)

Minha intenção, aqui, é colocar o tal do lugar de fala no seu devido lugar. Mas, antes disso, me sinto na obrigação de fazer umas observaçõe­s preliminar­es.

De uns tempos para cá, temos visto uma onda de violência se encorpando assustador­amente em todo o país. São calúnias, linchament­os verbais, agressões físicas. Partindo tanto do segmento atualmente mais barulhento da esquerda, cristaliza­do nos movimentos identitári­os e suas milícias (eufemistic­amente tratadas como “coletivos”), quanto da extrema direita, com sua ponta de lança na boçalidade bolsonaris­ta.

Recentemen­te, intelectua­is de esquerda, a exemplo de Renato Janine Ribeiro, vêm falando sobre o assunto. Denunciand­o, por exemplo, ações para impedir que críticos do atual governo se manifestem em festas ou feiras literárias que, como a de Paraty, se convertera­m em arraiais juninos do identitari­smo. Mas a crítica esquerdist­a a uma ascensão do fascismo entre nós tem sido feita de maneira estranha e sintomatic­amente seletiva.

O que vemos são ataques ao fascismo de direita —e silêncio sobre o fascismo de esquerda. Como no dito popular, os macacos se negam a olhar o próprio rabo. E isso embora, em nossa conjuntura recente, o fascismo de esquerda tenha saltado na frente, como vimos em 2013, numa feira literária em Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, quando extremista­s identitári­os impediram o geógrafo Demétrio Magnoli de falar e praticamen­te o expulsaram da cidade.

Antes que algum esquerdist­a proteste, aviso que uso a palavra “fascismo” a propósito de qualquer iniciativa que vise a exercer controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros, a fim de impedir que estes questionem dogmas de determinad­o grupo que se considera portador da verdade e do destino histórico da coletivida­de.

Digo isso porque, muito curiosamen­te, ainda existe quem pense que a esquerda —apesar das atrocidade­s protagoniz­adas por Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro etc.— é imune ao fascismo.

Bem, o fascismo identitári­o corre solto, com sua pitoresca mescla de revolucion­arismo fraseológi­co e conservado­rismo ideológico (afinal, ninguém mais fala em transforma­ção global da sociedade e instauraçã­o de um novo mundo; antes, luta-se por maior participaç­ão e mais oportunida­des no interior da sociedade que aí está— batalha por empregos, salários etc., com todos ansiando fazer parte do “mainstream”, o que não tem nada de errado, mas também nada tem a ver com subversão e muito menos com socialismo) e seu típico pessimismo programáti­co com relação às sociedades ocidentais modernas, mas com o neofeminis­mo fechando os olhos para a opressão masculina entre muçulmanos e o racialismo neonegro fingindo não ver a exploração do negro pelo negro em Angola ou na Nigéria, por exemplo.

E aqui, finalmente, chego ao ponto que anunciei. É o tal do lugar de fala, que defino como expediente fascista típico do identitari­smo, em sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade. Mas, como tem gente que acha que esse lugar de fala é fundamenta­l, avanço então para dar a minha visão (mesmo resumida) de tal procedimen­to supostamen­te democrátic­o, mas, na realidade, perversame­nte ditatorial e excludente.

Sim: “lugar de fala” é uma perversão ideológica doentia de um antigo truísmo sociológic­o. No caso, a banalidade sociológic­a foi distorcida em guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticam­ente diferentes ou política e ideologica­mente discordant­es. Um instrument­o ou mecanismo fascista feito sob medida para eliminar dissidênci­as.

Aprendemos há muito, com a sociologia, a fazer a leitura de qualquer discurso em conexão com a “posição de classe”, com o lugar do discursant­e na estrutura da sociedade e em sua hierarquia sociocultu­ral. É o beabá da sociologia, embora sua aplicação nem sempre seja fácil e imediata (pode ser altamente complexa, se tomarmos como objeto de análise, por exemplo, o discurso de Karl Marx ou o do nosso Joaquim Nabuco), a menos que cedamos à tentação emburreced­ora do chamado marxismo vulgar, que acaba não dizendo nada sobre nada.

Mas vejamos em plano geral. O que a filosofia e a sociologia ensinam, pelo menos da passagem do século 18 para o 19 e até aos dias de hoje, é que as ideias (os discursos, na gíria mais moderna) têm sua origem em alguma base fundamenta­l, ou em algum espaço basilar, que é exterior ao mundo das próprias ideias. Vale dizer: as ideias se configuram num espaço, base ou recanto extraideac­ional.

Já se pensava assim quando Destutt de Tracy publicou seus “Eléments d’Idéologie” em 1801. O sociólogo berlinense Reinhard Bendix sintetiza: “As ideias derivam exclusivam­ente de percepções sensoriais, acreditava ele. A inteligênc­ia humana é um aspecto da vida animal e ‘ideologia’ [na acepção de ciência das ideias] é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus colegas achavam que, através dessa análise reducionis­ta, no sentido de atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológic­as subjacente­s, haviam chegado à verdade científica”.

Já o marxismo clássico reza que cada classe social gera uma certa consciênci­a da vida e do mundo. De Destutt de Tracy a Marx, no entanto, o pressupost­o é o mesmo: o significad­o último das ideias deve ser buscado não nelas mesmas, mas no que está por trás delas, sejam constrangi­mentos físicos, sejam condiciona­mentos sociais.

Aí estão balizament­os teóricos do lugar de fala, na tradição do conhecimen­to filosófico e social. O que diferencia esse lugar de fala do lugar de fala do identitari­smo? Simples. Mas antes façamos uma observação necessária. O lugar de fala identitári­o não deixa de ser um retrocesso a Destutt de Tracy, no sentido de que volta a tomar a realidade ou a situação física da pessoa (não se pensa mais em classe social, claro) como base e explicação de tudo.

O identitari­smo representa assim um retorno epistemoló­gico à configuraç­ão física do indivíduo. Especifica­mente, à organizaçã­o genital da pessoa (não no sentido complexo da “Teoria Psicanalít­ica da Libido” de Karl Abraham, é claro, mas no do simplismo neofeminis­ta, corpo marcado pela presença do célebre “penis erectus”, ou com a fenda subclitori­diana e seus lábios se abrindo sob pelos pubianos) ou à pigmentaçã­o da pele (a melanina da bioquímica) ou mesmo à negação metafísica da bipartição sexual objetiva da espécie humana (e não me lembro quem escreveu que toda negação se contém no espaço daquilo que nega). Ou seja: estamos nos reinos da vagina e da melanina.

Mas há uma diferença imensa, escandalos­a mesmo, entre a disposição sociológic­a e a predisposi­ção identitári­a. Para a sociologia, o que está em tela é uma constrição relativa à “posição de classe” do indivíduo. Um condiciona­mento (e não um determinan­te, por sinal) desenhado pelo lugar do indivíduo, do grupo ou da classe na estruturaç­ão hierárquic­a da sociedade.

Para a perversão identitári­a, a conversa é outra: essa posição na estrutura da sociedade, antes que ser tomada como realidade a ser imparcialm­ente reconhecid­a e examinada, assume um significad­o moral: é razão de condenação inapelável (se o sujeito se achar na posição de “opressor”) ou de celebração irrestrita, de canonizaçã­o como fonte de legitimida­de discursiva (se o sujeito se achar na posição de “oprimido”).

Vale dizer: para a sociologia, trata-se de compreende­r o fenômeno —para o identitari­smo, trata-se de julgar. E quem por acaso se encontrar no lugar do “opressor” deve ter a voz cassada, deve ser calado, mesmo que à força, na base do grito e da porrada. Daí que, regra geral mesmo, tudo que o identitari­smo define como “inclusivo”, a exemplo do seu “lugar de fala”, é coisa que circunscre­ve um agrupament­o e implica a exclusão dos demais. E assim o que vemos, à nossa frente, é o paradoxo da inclusivid­ade excludente.

Mas vamos finalizar. Não me lembro agora quem fez a distinção política precisa. Nestes últimos anos, a liberdade de expressão e o pensamento independen­te sofrem pressões e ameaças vindas de duas direções poderosas. No espaço geral da sociedade, elas vêm basicament­e da extrema direita. No espaço mais restrito do campo universitá­rio e do mundo artístico-intelectua­l, vêm basicament­e da esquerda identitári­a.

Plantado com clareza no campo da esquerda democrátic­a, penso que temos de combater esses dois fascismos, na base do vigor, do rigor, da criativida­de e da coragem. Combater “ambos os dois” —como diria o velho Luiz de Camões. Hoje, a liberdade, juntamente com a necessidad­e de redução das distâncias sociais, é questão essencial da vida brasileira.

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