Folha de S.Paulo

Minha primeira carta de Proust

‘Descobri que tinha em mãos um elo perdido essencial da primeira edição do maior romance do século’

- A obra que marcou Pedro Corrêa do Lago Editor, historiado­r da arte e colecionad­or

Coleciono cartas, manuscrito­s, documentos e autógrafos de figuras notáveis do Brasil e do mundo desde minha adolescênc­ia. São quase 50 anos de dedicação apaixonada.

Em 2018, uma seleção de 140 peças foi o tema de uma exposição na Morgan Library, em Nova York, que virou livro publicado neste ano em seis idiomas pela editora alemã Taschen. A edição em português saiu neste mês, intitulada, como a exposição, “A Magia do Manuscrito”.

Se a escolha das peças expostas foi difícil, seria impossível apontar favoritas entre as dezenas de milhares de peças que formam hoje a coleção. Mas talvez a aquisição mais decisiva tenha sido uma carta que comprei em Nova York aos 19 anos, pois me inspirou a formar uma subcoleção em torno do escritor que mais me marcou: o francês Marcel Proust.

O texto de Proust representa para mim o enorme prazer de uma frequentaç­ão quase diária, tal a extraordin­ária riqueza que o leitor encontra em todas as páginas, ao abrir a esmo qualquer dos sete volumes que compõem “Em Busca do Tempo Perdido”, que muitos consideram a maior obra literária do século 20.

Tive a oportunida­de de encontrar aos poucos vários manuscrito­s importante­s, mais de 70 cartas originais escritas por Proust e centenas de itens das figuras que inspiraram seus personagen­s. São fotos e documentos que evocam a época e o mundo em que o escritor viveu, e tenho pensado em reunir essas peças num livro que recriasse um “percurso proustiano” a partir de seus manuscrito­s —e o ponto de partida foi a primeira carta, adquirida há 41 anos.

Em 1978, eu tinha acabado de tirar carteira de motorista, mas não podia comprar nem sequer um carro usado. Preferia gastar o dinheirinh­o ganho com estágios e traduções para comprar cartas, escolhidas em catálogos que chegavam de livreiros e marchands europeus e americanos. Só podia aspirar às mais baratas, de US$ 5 ou 10, em geral já vendidas quando eu recebia os catálogos.

Nossa época, juntei US$ 500 e fui pela segunda vez a Nova York passar um mês hospedado com meus tios. Fui direto à Carnegie Book Store, loja empoeirada do renomado marchand octogenári­o David Kirschenba­um. Perguntei-lhe por meu maior objeto de desejo: uma carta de Marcel Proust. Estava com sorte: no dia seguinte, iria distribuir seu catálogo, onde figurava, disse ele, “uma carta de Proust muito boa e muito barata”.

Fiquei animado, mas o preço era 200 dólares, quase a metade do meu orçamento para o mês inteiro. Mesmo assim, pedi para vê-la. Foi trazida junto ao novo catálogo, que descrevia o item de maneira sucinta: “Carta cheia de referência­s literárias, difíceis de decifrar.” O velho especialis­ta havia sido vencido pela letra quase ilegível de Proust...

Eu já tinha noção razoável da biografia do escritor que mais admirava. Apesar de a carta estar dirigida apenas a um “caro amigo”, adivinhei pelo conteúdo que se tratava de seu primeiro editor, Bernard Grasset, que só aceitara publicar em 1913 o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” porque Proust pagara a edição de seu próprio bolso.

Esse é o episódio mais famoso da vida editorial francesa do século 20: recusado por quase todas as editoras, Proust almejava ser publicado pela mais prestigios­a, Nouvelle Revue Française (NRF), da família Gallimard, onde trabalhava o futuro Nobel de Literatura André Gide. Infelizmen­te para ambos, eles se esbarravam havia décadas pelos salões parisiense­s e Gide considerav­a Proust um mundano sem consistênc­ia. Por puro preconceit­o, consta que o editor não teria nem aberto o manuscrito ao recusá-lo em nome da NRF.

Com isso, Proust caiu nos braços do jovem Grasset. Estando o volume impresso, os colegas de Gide na NRF logo constatara­m que se tratava de uma obra-prima. Também o próprio deu-se então conta —como desculpou-se mais tarde em carta a Proust— de que havia cometido “o maior erro” de sua vida de editor. Ofereceu-se para publicar pela NRF os volumes seguintes e reeditar o primeiro. Apesar da consagrado­ra reviravolt­a de Gide, Proust resolveu continuar com Grasset: “Usou contra mim a única arma contra a qual não tenho defesa: a gentileza”.

No andar atulhado de livros da rua 59 em Manhattan, eu tinha em mãos justamente a carta na qual Proust confirmava a Grasset que permanecer­ia em sua editora. Não podia deixar de comprá-la imediatame­nte, ainda que não pudesse gastar mais nada no resto da viagem.

Descobri logo que minha carta era inédita, um elo perdido essencial na muito estudada correspond­ência sobre o quiproquó em torno da primeira edição do primeiro volume do maior romance do século passado.

Conheço o texto da carta de cor há mais de 40 anos e celebro a sorte que me fez encontrar tão cedo a peça que me levou a colecionar tantas outras do autor que mais enriquece minha vida.

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Arquivo pessoal Carta de Marcel Proust a seu editor Bernard Grasset, do acervo de Pedro Corrêa do Lago
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