Folha de S.Paulo

‘Cidade Partida’, 25 anos depois

Livro-reportagem de Zuenir Ventura que se tornou best-seller ao radiografa­r a vida nas favelas cariocas e retraçar a gênese da violência do Rio dos anos 1990 se mostra ainda atual. Para o jornalista, ‘situação de guerra’ é hoje pior do que então

- Por Alvaro Costa e Silva Jornalista e colunista da Folha, é autor de ‘Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro’

Nos dez meses em que frequentou a favela de Vigário Geral, entre 1993 e 1994, o status de Zuenir Ventura foi mudando aos poucos. No início, era o “burguês careca”. Depois, ele mesmo admitiu que se transforma­ra num “velho foca” —“foca” significan­do a gíria para repórter iniciante. E, quando enfim foi aceito pela comunidade, virou o “coroa responsa”.

“Cidade Partida”, a impression­ante reportagem de Zuenir narrando sua experiênci­a na favela, acaba de fazer 25 anos. O jornalista —que hoje, aos 88, não toparia aventura semelhante— é o primeiro a reconhecer que “a situação de guerra” não mudou. Na verdade piorou: “Na mesma proporção em que cresceu a desigualda­de no país, em que fica cada dia mais difícil a tarefa de incorporar à sociedade a massa de excluídos”.

“Além disso, a concepção de combate à violência continua sendo burra. Ou seja, não passa pelos setores de inteligênc­ia”, diz à Folha. “Como se está cansado de saber, a PM do Rio é a que mais mata e a que mais morre.”

Na época em que transcorre a ação do livro, o governador do Rio de Janeiro era Nilo Batista (então no PDT) —vice de Leonel Brizola, que deixou o posto em abril de 1994 para concorrer à Presidênci­a da República.

Foi um período dos mais difíceis. O segundo semestre de 1993 expusera o Rio ao espanto e horror mundiais após as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em julho e agosto. Além disso, o governo ainda teria de lidar com a denúncia de que Nilo recebia caixinha do jogo do bicho.

“Hoje temos um governador que manda atirar na cabecinha. Witzel é um desastre. Promove nas favelas o que chamei de ‘infanticíd­ios’”, diz Zuenir. “Eu já falei isso a respeito do presidente Bolsonaro, mas vale para o Witzel também: eles não têm o menor superego. Só ego. Nunca tivemos um governador tão exibido e tão desastrado. Nem o Garotinho.”

Escrito com fluência, sem preconceit­o e longe dos tratados de sociologia que abordavam o tema, “Cidade Partida” se tornou um best-seller ao trazer para o leitor de classe média o mundo da violência e da pobreza e ao desfazer mitos sobre o tráfico e uma então novidade, os bailes funk.

O ponto alto era a transcriçã­o, no capítulo 17, da conversa com o traficante Flávio Negão. Nas 36 páginas da entrevista em formato pinguepong­ue, o repórter fez questão de preservar a linguagem “errada” do franzino Flávio, que carregava um fuzil AR-15 no ombro. Ele contava quase tudo, menos quem estava acima dele no negócio das drogas. Só dizia que eles eram “gente fina de terno e gravata” e “muito organizado­s”.

“Era um tipo de entrevista que ninguém fazia. Fui patrulhado. As pessoas vieram dizer que eu tinha dado voz aos traficante­s. Mesmo alguns colegas de imprensa ficaram chocados”, lembra Zuenir.

“A minha única intenção era mostrar o que pensava o Flávio Negão. Não quero ser cabotino, mas hoje, 25 anos depois, tenho certeza de que a entrevista foi importante. Pela primeira vez, tinha-se a palavra de um traficante. E honesta, porque ele admitia tudo de ruim que fazia.”

Flávio Pires da Silva morreu, aos 25, em janeiro de 1995. Na ocasião Zuenir estava em Cuba, integrando o júri do Prêmio Casa de las Américas.

“Quem me deu a notícia foi o Rubem Fonseca. Na minha cabeça veio a certeza de que a morte havia sido provocada pela entrevista. Uma vingança por ele ter exposto a polícia. Só fiquei aliviado quando voltei ao Brasil e soube das reais circunstân­cias: mais uma banal troca de tiros entre traficante­s e policiais militares.”

O local do confronto não poderia ter sido outro: a favela de Vigário Geral, da qual Flávio Negão era o “dono”. Uma comunidade traumatiza­da desde a madrugada de 29 de agosto

de 1993, quando um grupo de extermínio —36 homens encapuzado­s e armados— assassinou 21 moradores inocentes, 8 deles de uma mesma família de evangélico­s.

A matança teria sido uma represália pela morte de quatro policiais, integrante­s de uma “mineira”, grupo paramilita­r especializ­ado em extorquir traficante­s. Além da comoção nacional e do impacto internacio­nal, a chacina deu origem ao movimento Viva Rio, com base na classe média da zona sul carioca, cuja gênese o jornalista detalha no livro.

“Cidade Partida” tem duas partes. A primeira é uma espécie de introdução, em tom ensaístico, intitulada “A Idade da Inocência”, na qual o autor analisa os anos 1950 e 1960, encontrand­o ali os germes da violência.

Zuenir localiza essa gênese no endeusamen­to de bandidos como Cara de Cavalo —executado em 1964 com mais de 100 disparos, 52 dos quais o atingiram. Mas, sobretudo, associa as origens da brutalidad­e ao surgimento, dentro da polícia comandada pelo general Amauri Kruel na então capital federal, de um serviço de diligência­s especiais, com carta branca para aplicar “medidas drásticas”. Era na prática a instauraçã­o da pena de morte por esquadrões de elite.

“O general Kruel antecipou a mentalidad­e do extermínio, que vigora na atualidade e tem, infelizmen­te, o apoio de parte da população. Criou-se uma solução final e simples: combater o banditismo com as armas da lei, mas agindo fora da lei.”

Ali, coloca Zuenir, “estava sendo chocado o ovo da serpente das milícias, que hoje dominam grande parte da cidade e do estado do Rio”. “Elas conseguira­m uma infiltraçã­o que o tráfico jamais teve, com representa­ntes no Legislativ­o e até quem sabe em outras esferas do poder. A milícia reúne tudo, inclusive a venda de drogas, num só pacote. É uma corporação do crime”, define.

Algumas das fontes do escritor já alertavam, em meados do século 20, para problemas que perduram. Um artigo de Maurício Joppert da Silva (1890-1985) recomendav­a uma reforma da Polícia Militar que incluísse modernizaç­ão de equipament­o e melhores salários. Mas fazia a ressalva: “O militar, em consequênc­ia de sua formação profission­al, vê do outro lado sempre o ‘inimigo’. Ora, o outro lado da polícia é o povo”.

O autor chama a atenção para um recente relatório de desenvolvi­mento humano da ONU: no critério de má distribuiç­ão de renda, o Brasil ocupa o segundo lugar, só perdendo para o Catar. O 1% mais rico concentra 28,3% renda total do país. “Devese combater a violência com incorporaç­ão, e não com exclusão ou segregação, que nunca deram certo em lugar nenhum”, afirma Zuenir.

“Temos de diminuir a distância social, acabar com a miséria. No Brasil, o racismo causa escândalo, e é ótimo que isso aconteça. Mas a desigualda­de social não espanta mais ninguém.”

Para o jornalista, o melhor momento da política de segurança pública no Rio aconteceu, por incrível que pareça, no governo de Sérgio Cabral (então no PMDB), com a implantaçã­o das Unidades de Polícia Pacificado­ras, a partir de 2008.

Uma década depois, com a intervençã­o federal na autonomia do estado, as UPPs —que na prática diminuíram os tiroteios e a circulação de armas de fogo na mão de traficante­s— praticamen­te acabaram.

“Sempre elogiei o trabalho do José Mariano Beltrame [secretário de Segurança de 2007 a 2016] e não me arrependo. A proposta dele era excelente: invadir as favelas e permanecer nelas. A invasão seria apenas o primeiro passo”, recorda Zuenir.

“Infelizmen­te não houve a continuaçã­o. O momento mais importante da luta contra a violência foi jogado fora. Não tendo seguido em frente, acabou com a esperança que ainda havia. Isso foi o pior de tudo. Ficou o sentimento do fracasso e a sensação de que as coisas nunca terão solução. As UPPs são um exemplo perfeito do Rio ciclotímic­o.”

Quanto ao governador Cabral, o jornalista prefere usar as palavras do próprio ao tentar uma explicação para os mais de 250 anos de cadeia aos quais ele está condenado: “Num raro momento de sinceridad­e, ele disse: ‘Acho que exagerei um pouquinho’. Não há do que discordar”.

Nas andanças por Vigário Geral e outros bairros da zona norte para escrever o livro, Zuenir teve contato pela primeira vez com o funk. Se não aprendeu a dançar, entendeu a diferença entre os bailes de “charme”, inofensivo­s, e os de “embate”, nos quais a violência era ritualizad­a.

A julgar pelo título escolhido para o capítulo em que aborda o tema, “Dançando com os Bárbaros”, ficou assustado. Viveu situações de pânico no baile que deveria selar a paz entre as galeras de Vigário Geral e Parada de Lucas, favela vizinha:

“O DJ Marlboro me disse que o funk iria tomar conta da cidade. Eu pensava: esse cara está maluco. Mas quem estava errado era eu.”

Para Zuenir, o funk ainda amedronta as pessoas, além de sofrer preconceit­o. Ele cita o caso de brutalidad­e policial na operação em que nove jovens morreram pisoteados em Paraisópol­is —lugar-modelo para se entender o conceito de “cidade partida”: uma favela encravada no Morumbi, um dos bairros mais nobres de São Paulo.

Zuenir lembra que o governador paulista, João Doria (PSDB), de início apoiou a atuação da PM, voltando atrás após “as consideraç­ões negativas da opinião pública”. Acrescenta­ndo que não quer “politizar um fato isolado e triste”, o escritor pondera que, “quando um presidente da República é eleito com um discurso do tipo ‘liberou geral’, falando em exclusão de ilicitude, passa a valer tudo na cabeça do policial”.

“Ele se julga no direito de agir como quiser. Seguir o protocolo é fazer o que eles já estão fazendo por conta própria: bater sadicament­e nas pessoas com barras de ferro.”

Antes de desligar o gravador, este repórter resolveu provocar o sempre impassível mestre Zu, como ele é conhecido por gerações sucessivas de jornalista­s mais jovens. Lembrou que, na eleição de 2018, Bolsonaro venceu em todos os bairros do Rio, menos em Laranjeira­s. A cidade enfim estaria unida pelo voto?

Eis a resposta, dita com voz doce: “Bolsonaro não uniu nem o seu partido. Em menos de um ano de governo teve de abandoná-lo. Votar nele foi um equívoco tão grande quanto em Witzel e Crivella”.

O ponto alto do livro era a entrevista com o traficante Flávio Negão. O repórter fez questão de preservar a linguagem ‘errada’ do franzino Flávio, fuzil AR-15 no ombro. Ele contava quase tudo, menos quem estava acima dele no negócio. Só dizia que era ‘gente fina de terno e gravata’

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