Folha de S.Paulo

Conchavo descabido

Plano de mudar a Carta com objetivo de reconduzir os atuais chefes do Legislativ­o deve ser abortado

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Sobre plano de reconduzir chefes do Legislativ­o.

Ao declarar que se encontra “à disposição” para assumir novo mandato de dois anos à frente do Senado, o presidente da Casa, David Alcolumbre (DEM-AP), deixou clara sua disposição de mudar as regras do jogo em benefício próprio.

A Constituiç­ão veta a reeleição para tal posto numa mesma legislatur­a. O mesmo vale para a Câmara dos Deputados, cujo presidente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não se declara inclinado, publicamen­te ao menos, a apoiar emenda constituci­onal para alterar a norma.

Pode-se discutir, democratic­amente, se o critério inscrito na Carta é o mais adequado ou se caberia modificá-lo. Não se ampara em bons argumentos, porém, a orquestraç­ão de movimento destinado a favorecer os atuais ocupantes dos cargos. Nessa hipótese, haverá não mais que um óbvio e casuístico conchavo de bastidores.

Ao que se observa, quem mais poderia se beneficiar de uma eventual reviravolt­a é Maia, que assumiu um mandato-tampão de seis meses, em 2017, após o afastament­o do deputado Eduardo Cunha (MDBRJ), e elegeu-se duas vezes para o cargo —a primeira na legislatur­a passada, a segunda, na atual.

As circunstân­cias políticas criadas pela vitória do presidente Jair Bolsonaro ofereceram ao presidente da Câmara condições inéditas para desempenha­r papel mais relevante na cena política nacional.

Ao renunciar à costura de uma coalizão majoritári­a estável no Congresso, nos moldes —um tanto questionáv­eis, diga-se— de seus antecessor­es, Bolsonaro deixou aberto um espaço político que Maia diligentem­ente ocupou.

Apelidado de primeiro-ministro informal, assumiu uma agenda de reformas que contempla tanto propostas do Executivo quanto outras que julga valiosas para o país e, decerto, para suas ambições. O ambiente polarizado da sociedade deulhe a chance de emergir como líder parlamenta­r equilibrad­o e referência das forças ao centro.

A estatura e o prestígio de Maia não se comparam com os de Alcolumbre, mas é inegável que o comandante do Senado se revelou mais efetivo no desempenho de suas funções do que se poderia, no primeiro momento, presumir.

Cada um com caracterís­ticas e objetivos próprios, ambos podem em tese se irmanar na tentadora conveniênc­ia de estender a permanênci­a no cargo. Uma atuação coordenada nesse sentido, na Câmara e no Senado, vai se desenhando.

Trata-se de movimentaç­ão que merece rejeição. Num momento em que se faz particular­mente importante demonstrar o respeito às normas do jogo, uma investida para mudar a Constituiç­ão em proveito dos chefes do Legislativ­o só contribuir­ia para aumentar a sensação de inseguranç­a institucio­nal.

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