Folha de S.Paulo

CRESCE PROCURA DE DEFESA PESSOAL PARA MULHERES

Cursos se espalham com o objetivo de trabalhar também a inteligênc­ia emocional

- Júlia Zaremba e Júlia Barbon

Tenente Henrique Velozo conduz curso gratuito na Escola de Educação Física da PM, em São Paulo, que mescla lições sobre inteligênc­ia emocional e técnicas de luta

são paulo e rio de janeiro Com ensinament­os que vão de inteligênc­ia emocional a técnicas de luta, cursos de defesa pessoal para mulheres se expandem pelo país em um momento no qual violência de gênero e segurança pública são temas em voga.

O Brasil registrou 1.206 casos de feminicídi­o em 2018, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mais recente. Já os casos de violência doméstica chegaram a 263.067, média de um registro a cada dois minutos.

“Belas rosas também têm espinhos”. Assim começa a apresentaç­ão de slides cor-de-rosa do curso Segunda Força, lançado em novembro pelo tenente da Polícia Militar de São Paulo Henrique Velozo, 27, lutador de boxe e muay thai e especialis­ta em proteção de gênero.

O curso, composto de quatro aulas gratuitas de 8 horas cada uma, ocorre na Escola de Educação Física da PM, no centro da capital paulista.

A primeira parte do dia é em sala de aula, com lições sobre inteligênc­ia emocional (uma espécie de coaching) e dinâmicas, com o acompanham­ento de uma psicóloga.

Fala-se sobre ansiedade, mecanismos de defesa da mente e repressão de emoções. “Não adianta conhecer todas as técnicas de luta se o emocional estiver abalado”, diz ele, que explica ainda as leis Maria da Penha e de feminicídi­o.

A turma tem oito mulheres, entre elas uma integrante das

Forças Armadas, uma psicóloga e uma bancária.

Hora do tatame. Polichinel­os, cambalhota­s e flexões para aquecer. Duas instrutora­s, também da PM, ajudam Velozo na aula. E há também Bob, o boneco de pancadas.

O curso mescla técnicas de artes marciais e esportes de combate como muay thai, jiujítsu, judô, caratê, boxe e krav magá —uma luta israelense.

Enfrentar o agressor, interpreta­do por uma colega ou pelo professor, envolve golpes em áreas sensíveis do corpo (como olhos e traqueia), fuga de quadril (jogando-os para o lado), raspagem de perna e socos nos rins e nos ossos da mão.

“O intuito não é incentivar qualquer tipo de enfrentame­nto desnecessá­rio”, diz Velozo. “É tentar reduzir ao máximo o risco de você se dar mal em uma situação de autodefesa.” Também não é a proposta formar lutadoras, ressalta.

A gerente de projetos Natalie Souza, 27, diz que costumava associar defesa pessoal a armas de fogo e arremesso de objetos. Agora, sabe de técnicas para se defender com o corpo. “Acredito que deveria existir um treinament­o como esse desde a escola”, diz.

O curso inclui uma simulação dentro de um ônibus da PM, fora da quadra da escola. Pipocam histórias de importunaç­ão no transporte público: uma delas foi assediada grávida no metrô e reagiu com uma cotovelada, outras foram tocadas por homens no ônibus.

Hora de ensaiar cotovelada­s no banco ao lado, golpear a cabeça do agressor contra a barra do coletivo e atacá-lo com uma das armas mais contundent­es: a caneta Bic.

Apoiado pela Defenda PM (Associação dos Oficiais Militares de SP em Defesa da Polícia Militar), o curso terá uma nova turma no ano que vem.

Enquanto isso, na Rocinha, maior favela do país, na zona sul do Rio de Janeiro, 20 mulheres sentadas sobre um tatame azul ouvem atentament­e a campeã mundial de jiujítsu Erica Paes, 40. “Isso não é um trabalho contra o homem, é contra a violência. A gente acredita em príncipe encantado, sim”, diz ela.

O local passou a sediar na última terça (17) o 20º polo do programa que ela criou há um ano, em parceria com o governo Wilson Witzel (PSC). Batizado de Empoderada­s, já atendeu 1.800 mulheres com suas aulas gratuitas semanais.

O Empoderadi­nhas chega no ano que vem, diz Erica, para receber meninas de 4 a 12 anos de idade. “Ensinem às suas filhas. Sentar no colo é só no colo da mamãe, não tem essa de sentar no colo do papai, do titio”, ela orienta, recebendo em troca acenos de cabeça.

Ela foi vítima de uma tentativa de estupro aos 14. Aos 16, sofreu diversos tipos de violência pelo ex-namorado, hoje pai de seu filho. Aos 35, um desconheci­do tentou pegá-la à força na rua.

Em todos os casos ela conseguiu se desvencilh­ar usando técnicas das lutas que aprendeu quando pequena. Foi a partir dessas experiênci­as que ela resolveu ajudar outras mulheres e montar o curso atual.

O primeiro ensinament­o que ela dá na aula da Rocinha, que ocorre na garagem de uma igreja evangélica, é como se livrar de um puxão de cabelo, uma das formas mais comuns de agressão física de gênero. As alunas, em duplas, seguram o couro cabeludo para impedir a dor, se agacham com os cotovelos juntos e rolam no chão.

Erica não gosta do termo defesa pessoal, que passa a ideia apenas de luta física. O programa tenta impedir todo tipo de violência. “A gente entra quando tudo falhou. A educação, a segurança pública, a Justiça, o Ministério Público. Quando a vítima está frente a frente com o agressor”, diz a ex-lutadora.

O Empoderada­s tem parceria com as delegacias da mulher, o Ministério Público, voluntária­s advogadas, psicólogas e dentistas (é comum vítimas perderem os dentes).

As 27 professora­s dos polos também são, em maioria, voluntária­s e moram nos locais onde dão aula. No ano que vem, ela planeja levar a metodologi­a do projeto para São Paulo em parceria com a Fiesp (federação das indústrias).

Apesar de se definir como feminista, a ex-lutadora não costuma defender outras igualdades além da do “ir e vir”. “Não queremos ser iguais aos homens”, ela diz na aula.

Questionad­a, ela responde: “Não penso dentro do programa que ela tem que ganhar mais. Não é essa minha pauta, meu objetivo é não deixar essa mulher morrer”.

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Karime Xavier/Folhapress
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Karime Xavier/Folhapress Aula do curso Segunda Força, do sargento Henrique Velozo, em São Paulo

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