Folha de S.Paulo

Liberdade religiosa e a proteção da paz social

Estado deve garantir o respeito ao sagrado do outro

- Danilo Molina Jornalista, pós-graduado em comunicaçã­o pública e zelador espiritual do Centro de Umbanda Cavaleiros de Ogum

A perseguiçã­o, o racismo e a intolerânc­ia contra as religiões de matrizes africanas extrapolar­am as fronteiras do nosso país. Reportagem do Washington Post, intitulada “Neopenteco­stais armados atormentam minorias religiosas brasileira­s” e reproduzid­a nesta Folha, denuncia o surgimento de verdadeira­s milícias armadas que perseguem as minorias religiosas não cristãs no Brasil.

O jornal norte-americano afirma que as ações criminosas fundamenta­listas envolvem desde a morte de sacerdotes até o apedrejame­nto de crianças. Os fiéis mais radicais do cristianis­mo evangélico, “em muitos casos filiados a gangues criminosas, vêm atacando com frequência crescente membros de minorias religiosas não cristãs no Brasil”, aponta.

Talvez não seja coincidênc­ia que a reportagem do Washington Post tenha sido publicada no mesmo dia em que juristas e lideranças religiosas de diversos credos lançaram manifesto pela defesa do Estado laico, pela liberdade religiosa e pelo fim das agressões contra as religiões afrobrasil­eiras. Dados do Disque 100, de janeiro a novembro de 2018, revelam que, em relação ao ano anterior, houve um aumento de 47% nas denúncias de casos de intolerânc­ia religiosa contra religiões de matrizes africanas. Em 2014, elas correspond­iam a 15% do total de denúncias; hoje, representa­m 59%.

A fé constitui-se como valor fundamenta­l da liberdade do espírito e da consciênci­a humana. Não como contrapont­o ou oposição à razão, mas como complement­o a ela. Por isso, em democracia­s consolidad­as, a liberdade religiosa é assegurada como um valor individual fundamenta­l e inegociáve­l, assim como a separação entre o Estado e a igreja.

Já em 1948, a Declaração Universal dos Direitos dos Homens assegurava a liberdade de pensamento, de consciênci­a e de religião. Esse valor foi reafirmado pelo Pacto Internacio­nal sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 —e ainda por outras duas declaraçõe­s proclamada­s pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1981 e em 1992.

Além de ser signatário desses documentos internacio­nais, o Brasil consagrou o compromiss­o com a liberdade religiosa e com o Estado laico na Constituiç­ão de 1988. O crime de perseguiçã­o religiosa também está expresso na Lei de Crimes contra a Segurança Nacional.

Entretanto, todo esse arcabouço legal não foi suficiente para assegurar um direito fundamenta­l a todos os brasileiro­s, especialme­nte aos adeptos de religiões de matrizes africanas. Essas religiões são historicam­ente alvo de perseguiçã­o, diretament­e relacionad­a ao racismo e ao nosso triste passado de escravidão.

O catolicism­o chegou em terras brasileira­s junto com os portuguese­s, sendo a religião oficial do Estado, imposta como parte essencial do processo de colonizaçã­o. Já os negros chegaram ao Brasil na condição de escravizad­os, tendo sua religião e cultura perseguida­s. Ainda hoje o racismo religioso, o ódio e a violência colocam em risco a nossa democracia. A situação é agravada pelo discurso obscuranti­sta, raivoso e fundamenta­lista de figuras públicas —algumas delas com notória ligação com essas milícias, que tomaram conta do país em diversos níveis de governo.

O Estado deve garantir uma sociedade em que não haja espaço para a banalizaçã­o e o desrespeit­o ao sagrado do outro. O Estado precisa assumir seu papel de mediador das tensões sociais, reconhecen­do que todos os cidadãos são de fato iguais perante a lei, não segmentar a população e pregar que uma maioria deve subjugar as minorias. Não cabe a qualquer autoridade o papel de alimentar a marginaliz­ação, enraizando a intolerânc­ia dos que não suportam o que lhes é diferente.

O que queremos é o direito ao pleno exercício da liberdade religiosa. Conforme expresso em nosso manifesto, a tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço à riqueza da diversidad­e das culturas e dos diferentes modos de expressão da condição humana. Assim, o objetivo para o qual todas e todos estão convidados é preservar e cultivar a tolerância como instrument­o de afirmação da dignidade humana, da cidadania, da democracia e da proteção da paz social.

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