Folha de S.Paulo

Ainda há tempo para um milagre

Jesus sempre escandaliz­ava no quesito livre arbítrio

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Embora acreditass­e na existência de um Deus, meu pai nunca botou fé nas religiões, o que fez com que minha incursão no catolicism­o não passasse do batismo.

Ciente dos escândalos financeiro­s e sexuais que cercavam as igrejas, muito antes de serem denunciado­s pela mídia, ele costumava dizer que não nos preocupáss­emos em seguir cultos, pois “Jesus não era católico, evangélico, protestant­e ou similar”.

A figura histórica de Jesus, no entanto, lhe era cara.

Minha cultura bíblica passa pela minissérie “Jesus de Nazaré”, de Franco Zeffirelli (1977) —eu sei, é piegas, mas não canso de revê-la. Adoro, especialme­nte a cena do centurião que intercede pela vida de um servo amado.

Ernest Borgnine, enrolado em sua roupa de soldado romano, se apresenta a Jesus pedindo que cure seu agregado a distância, posto que não se achava digno de recebê-lo em sua casa e que acreditava que a ordem de Jesus bastava.

Ponto para o centurião, em quem Jesus diz ter encontrado a maior fé dentre o povo de Israel. O ponto alto é o fato do servo desenganad­o ser milagrosam­ente salvo pelas palavras do salvador.

Ainda assim, ato contínuo, surgem as críticas ao inesperado gesto do nazareno.

Nesse caso, vinham do fato de ele se propor a ir à casa de um romano, casa do opressor do povo de Israel, povo escolhido. Jesus sempre escandaliz­ava no quesito livre arbítrio.

Como não me interesso por milagres de abrir mar, fazer pão virar peixe e outras maravilhas da mitologia religiosa, resta-me a emoção dos milagres da humanidade falível e tola.

E, nesse caso, trata-se de um cidadão se dirigir a alguém —a quem supostamen­te não poderia— pedindo ajuda e, surpreende­ntemente recebê-la, desse mesmo que não deveria nem sequer lhe dirigir a palavra.

O milagre que me emociona vem da ética e não da pirotecnia. O personagem lindamente encarnado por Robert Powell afirma que a fé do demandante é que curou o servo, devolvendo ao sujeito o poder que é inteiramen­te suposto ao filho de Deus.

Sem usar a religião como chicotinho, dizendo o que podemos ou não fazer, resta-nos o árduo trabalho de pensar com a própria cabeça, reconhecer que somos fracos e ainda assumir a total responsabi­lidade pelas bobagens que fazemos.

Das ideias e histórias atribuídas a Jesus, o que mais me interessa é a contraried­ade que causava seu discurso, sempre baseado na ética do respeito ao outro, fosse por uma prostituta, pelo suposto inimigo, pelos excluídos.

Talvez o maior milagre esteja no fato de um discurso tão revolucion­ário como esse ter sobrevivid­o aos séculos, embora não espante o fato de que não seja seguido em absoluto.

O desenho de Laerte para Ilustríssi­ma publicado neste último domingo (22), de um presépio feito de cartuchos de bala, resume tudo.

“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago (1991), que lhe rendeu o pão que o diabo amassou da crítica religiosa, separa o discurso atribuído a Jesus de Nazaré do joio de um cristianis­mo oportunist­a, no qual se encontram as Guerras Santas, a Inquisição e outras atrocidade­s feitas em seu nome.

Jesus é um personagem público e histórico, aberto a revisões da ciência e da arte. Nesse sentido, o “Especial de Natal Porta dos Fundos” é tão legítimo quanto a versão de Zeffirelli, gostem ou não.

Hoje é 24 de dezembro e, embora sejamos menos virtuosos do que Jesus parece ter sido, ainda há tempo para nosso milagre: sentarão centuriões e judeus à mesa para celebrar juntos a mensagem de tolerância e amor deste dia? Oxalá!

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