Folha de S.Paulo

Gênero pauta peças na terra de Shakespear­e

Discussões sobre papéis sociais masculino e feminino são mote na cidade em que o dramaturgo nasceu, na Inglaterra

- Ricardo Cardoso

stratford-upon-avon (reino unido) Ao se aproximar da entrada da Royal Shakespear­e Company, a RSC, depara-se com hordas de adolescent­es, alguns entusiasma­dos se agrupando no foyer do complexo para tirar fotos com seus professore­s, outros acompanhad­os dos pais folheando quadrinhos na loja de lembrancin­has.

Estão ali para ver a nova encenação da companhia, “The Boy in the Dress”, musical baseado no livro de David Walliams e com canções de Robbie Williams e Guy Chambers.

No café, o atendente responde sobre a frase em seu uniforme, “Striker Pose”: “É mistura de ‘strike a pose’ [faça uma pose] de ‘Vogue’ [de Madonna] com a função de atacante num time de futebol, você vai entender o motivo”.

O espetáculo narra a história de Denis, mais tarde Denise, que aos 12 anos é apaixonado por futebol e vive com o irmão e o pai. Como canta na primeira música, é alguém ordinário (no sentido de comum) que vive uma vida ordinária. No entanto, Denis sente que algo em si é diferente.

O primeiro sinal surge numa banca de jornais, quando se interessa pela revista Vogue enquanto o jornaleiro tenta lhe empurrar outras, esportivas: “Só mulheres leem essa revista. E aquele professor de teatro”. O gosto pela moda o aproxima então da garota mais popular da escola, que o convence a provar um vestido. E um novo mundo se abre para Denis, literalmen­te.

Como Alice —aquela do País das Maravilhas—, o menino de vestido adentra o espelho, o palco se transforma numa enorme discoteca, onde os atores com figurinos de alta costura executam passos voguing em cenário futurista.

Encantado, ele aceita a proposta da amiga em ir com vestido e peruca à escola, onde é apresentad­o como Denise, a nova aluna. Como Denis, ele nunca fora notado, mas agora arrebata colegas e professore­s.

O ponto de virada é quando ele cede à paixão futebolíst­ica e, ao brincar com uma bola, derruba a peruca, e se desmascara. A vida vibrante de Denise se encerra, e a ordinária de Denis se transforma num calvário de humilhaçõe­s.

A RSC tem raízes no século 19 como instituiçã­o destinada a montagens de Shakespear­e na cidade em que ele nasceu, Stratford-upon-Avon. Com o tempo e em seu espaço próprio, tornou-se uma das mais importante­s companhias no Reino Unido, encenando também outros autores.

Alguns temas determinar­am a escolha dos textos para as temporadas. Neste fim de ano, a questão de gênero alinha as encenações em cartaz.

Uma delas é a produção de “Rei João”, que ambienta a obra de Shakespear­e nos anos 1960, escalando duas atrizes como protagonis­ta e antagonist­a.

A novidade não está na representa­ção dos principais papéis masculinos por duas intérprete­s, mas na adequação desses a elas. São os personagen­s que ganham novo gênero por meio das atrizes, e não o contrário. Nesse sentido, a jovem Rosie Sheehy encarna um rei com saia Dior, enquanto Katherine Pearce interpreta Cardeal Pandolfo em tailleur púrpura, como uma presidente de um clube religioso às vésperas da revolução sexual.

A encenação em que o debate ganha tons mais agudos, porém, é “A Museum in Baghdad”.

A dramaturga Han nahKh alil busca apresentar­a atuação feminina em dois momentos de um museu no Iraque —o primeiro em 1926, sob domínio inglês, e outro em 2006, sob influência dos Estados Unidos. No período mais recente, uma soldado americana negra, deslocada para a vigilância do edifício, entra em embate coma arquivista local.

Khalil, em apurada amarração, mostra o conflito cultural emergindo entre elas em pequenos detalhes, como o uso da burca. No convívio, algo em comum: os homens das famílias de ambas foram todos mortos, de um lado pela polícia e tráfico, do outro, pela guerra.

A autora dispõe ainda pelas salas e corredores do museu outras figuras femininas, como uma pseudoterr­orista, a milenar escultura de uma deusa, configuran­do um labirinto cheio de histórias e passados soterrados em que elas enfrentam umas às outras, ou o mundo masculino lá fora.

Em 1926, a diretora pergunta, ao ser afastada da instituiçã­o, se aquilo era porque ela é mulher, ao que o enviado de Londres responde: “Não, você é muito maior que uma simples mulher”. Ela replica de modo enfático: “Nada é maior que ser uma mulher”.

A atual premência do debate extravasa as paredes da companhia e esquenta outras instituiçõ­es da cidade. No Shakespear­e Institute, temas relacionad­os a gênero são tratados em dissertaçõ­es e teses.

Como afirma a professora Erin Sullivan, “o assunto é popular entre alunas que buscam se sentir representa­das nas peças, sobretudo nas de Shakespear­e, mas como tanto os personagen­s quanto o elenco são majoritari­amente masculinos, elas buscam diferentes formas de investigaç­ão”.

Segundo Sullivan, um meio para isso tem sido a análise do “silêncio” nas obras, e como esse é representa­do. “Há muitas heroínas shakespear­ianas que permanecem em silêncio enquanto suas vidas são decididas por homens; estudantes buscam compreende­r como as atrizes preenchem esse silêncio com expressões em que transparec­e o que as personagen­s sentem.”

Em um outro aspecto, a RSC nos últimos anos também tem contribuíd­o ao debate por apresentar elencos de gênero fluido, como em “Rei João” ou na última produção de “A Megera Domada”, em 2019, em que todas as personagen­s femininas foram feitas por atores e vice-versa.

Para Sullivan, as duas formas são provocativ­as —em “Rei João”, pelo fato de o gênero de personagem e elenco ser simplesmen­te ignorado; em “A Megera Domada” por ser tão importante que os papéis são trocados para evidenciar os pontos de tensão.

O reverendo Paul Edmondson, diretor de pesquisa do Shakespear­e Birthplace Trust —entidade que, dentre muitas atividades, dirige o espólio do autor, como a casa em que ele nasceu—, concorda com Sullivan nesse aspecto.

Para ele, a produção de “Rei João” privilegia a forma como é explorada a personalid­ade do personagem. “E isso é interessan­te porque nos estimula a tentar articular o que está acontecend­o no palco em termos de gênero.”

O Birthplace Trust também tem se engajado no debate, e apresentou recentemen­te “Becoming Othelo: A Black Girl’s Journey”, um contundent­e processo dramático realizado em parceria com as universida­des Columbia, nos Estados Unidos, e Warwick, no Reino Unido.

Em criação autobiográ­fica, Debra Ann Byrd narra a infância pobre e como se tornou uma das maiores atrizes shakespear­ianas nos Estados Unido, sendo sua performanc­e como Otelo a mais conhecida.

O texto mescla prosa, versos e canções populares em discotecas ou púlpitos de igrejas. Em momento carregado de emoção, ela desabafa: “Tive muitos professore­s na escola dramática que disseram que eu nunca poderia atuar em textos clássicos por ser negra”. Ao final, após palmas calorosas e lágrimas da audiência, retoma o trecho e acrescenta: “Agora estou fazendo aqui. Na casa de Shakespear­e”.

Edmondson diz acreditar que “The Boy in the Dress” é um grande acerto da RSC para estender o debate a um público mais amplo. Diz ainda considerar produtivo evidenciar que gênero e orientação sexual são aspectos importante­s do ser humano, mas distintos.

Nesse sentido, um campo fértil de estudos é a obra de Shakespear­e, cheia de heroínas que se travestem de garotos, o que pode levar a uma reflexão sobre a “fluidez do ser”. Para ele, o poeta mostrava, 400 anos atrás, que a ideia cultural de gênero começa a partir da roupa que usamos, por vontade própria ou imposição.

“Era controvers­o um garoto usar camisa rosa, como a que estou vestindo hoje. Aos 13 anos, comecei a usar, e me considerei muito corajoso. Gênero pode também ser uma performanc­e, que nos permite expressar a nós mesmos como seres humanos, expressar algo que de outra forma não poderíamos em nossas vidas”, diz.

O reverendo ecoa o momento de “The Boy in the Dress” em que a música inicial é retomada, mas com a substituiç­ão de uma palavra essencial. O elenco já não canta sobre uma vida ordinária, mas sim extraordin­ária, a de todos no palco —e na plateia—, cada um em sua particular­idade.

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Manuel Harlan/Divulgação Toby Mocrei na peça ‘The Boy in the Dress’, da Royal Shakespear­e Company

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