Folha de S.Paulo

Morre o brasiliani­sta que mostrou outro mundo da escravidão

- Lilia Schwarcz Historiado­ra e antropólog­a da USP, é professora visitante em Princeton

Morreu na semana passada o grande historiado­r Stanley J. Stein, que completari­a cem anos em junho, mas tinha cabeça, jeito, energia e valores de um jovem irrequieto. Era especializ­ado em história da América e portuguesa, mas se apaixonou mesmo pelo Brasil.

Seu trabalho sobre Vassouras, de 1957, mostrou um outro mundo da escravidão. Stan, como era conhecido, gravou nessa pesquisa, quase que sem querer, o canto dos jongueiros, talvez o único relato desse tipo de manifestaç­ão cultural.

Ele era professor dos mais queridos em Princeton e jamais deixou a universida­de. Assistia a cursos sobre Brasil com a alegria de um estudante curioso, não perdia uma palestra, fazia perguntas atrevidas e se encantava com tudo que aprendia.

Assistiu a um curso sobre marcadores sociais da diferença que ministrei faz um ano e se encantou com a discussão de gênero. “Nunca tinha pensado dessa maneira”, ele me segredou com expressão malandra. Discutia história do pensamento brasileiro e não perdoava Gilberto Freyre.

Falava português com um sotaque delicioso e praticava o idioma sempre que podia. “Para não enferrujar”, dizia ele.

Stan tinha cadeira cativa no restaurant­e Mezza Luna e chamava todos os garçons pelo nome, e eles faziam o mesmo. Eram imigrantes, me explicava ele, “todos explorados”.

Da última vez que o encontrei, em novembro passado, confessou que “não se conformava” que nós brasileiro­s tivéssemos eleito um “presidente retrógrado e fascista”.

Ele, que era um intelectua­l progressis­ta, não escondia sua indignação diante da guinada que o mundo estava dando, e se dizia “frustrado com isso tudo”.

Stan era um pensador que tinha coragem de se indignar e andava decepciona­do com esse mundo onde pessoas como Trump e Bolsonaro chegavam ao poder.

Morreu cercado por amigos, pela família, que o adorava, e pela namorada, Beth. Morreu como viveu: com independên­cia intelectua­l e imensa autonomia. Vai deixar muita saudade nesse mundo tão sem utopia.

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