Filhos de músicos brigam pelos direitos dos pais
Legados de Tim Maia e Taiguara opõem descendentes e enteados, enquanto Legião Urbana paga herdeiro de Renato Russo
A morte de um músico é quase sempre trágica. Mesmo nos casos de artistas que há anos não produzem ou que enfrentam doenças sérias, a lamentação dos fãs costuma ser proporcional à influência que deixam na sociedade.
Mas o legado desses artistas vai além da capacidade de moldar acultura. Quando um músico morre, é como se ele virasse uma marca ou empresa, cujos ativos —desde a obra já lançada até o uso de nome ou imagem— carecem de administração proporcional à fama de seus criadores.
Na maioria dos casos, essas tarefas acabam na mão dos herdeiros .“Quandoéo autor [quem administra], ele quer vera obra circulando, porque quando cria, geralmente é para todo mundo”, diz Marco Berberi, professor de direito especializado em sucessão hereditária e direitos autorais. “Uma par tedos herdeiros fica sempre pensando na parte econômica .”
Tim Maia morreu em 1998, mas só recentemente seus dois filhos iniciaram uma disputa pelo uso comercial do nome do pai. Léo Maia, o mais velho, lançou o musical “Tim Maia for Kids”, um show interativo para crianças, e seu irmão, Carmelo, enviou a ele uma notificação extrajudicial determinando que as apresentações fossem interrompidas.
Léo é filho de Geisa Gomes da Silva, grande paixão de Tim. Apesar de não ser filho biológico do cantor, foi criado por ele desdequenasceu,em1974.Carmelo,quenasceudezmesesdepois, também é filho de Geisa, e único herdeiro legal de Tim.
“Sempre fui o irmão mais velho, o que defendia nas brigas, que arrumava as gatinhas porque ele era mais tímido”, diz Léo. “Meu irmão começou a ver a grana, achar que era o Tim Maia na Terra. Depois de 22 anos, começou com isso.”
Carmelo diz estar impedido de dar entrevistas, já que o caso está na Justiça. Ele diz que o irmão usa o nome do pai para fazer shows há duas décadas sem ter direito.
“Ele não pode me negar o direito de ser irmão dele, porque somos filhos da mesma mulher”, diz Léo. “Meu pai me adotou quando minha mãe tinha dois meses de gestação.”
A princípio, Léo diz nunca ter tido interesse em dinheiro. Ele vive, contudo, dos cerca de 15 a 20 shows mensais homenageando e cantando as músicas do pai. Léo conta que chega a pagar alguns milhares de reais por mês ao irmão pelos direitos autorais.
Desde o conflito com o projeto infantil, a história tomou novos rumos. Léo agora quer ser reconhecido como filho socioafetivo de Tim, o que lhe daria os mesmos direitos de Carmelo. Ou, pela falta de acordo, pode fazer com que a obra de Tim Maia fique travada.
Em outro caso, o herdeiro de Renato Russo, Giuliano Manfredini, já teve um embate com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, ex-guitarrista e ex-baterista da Legião Urbana. A dupla queria usar o nome da banda para novos projetos —como a turnê que fizeram celebrando os 30 anos do grupo—, enquanto Manfredini cobrou um terço dos lucros para liberar o título.
Nesses casos, os valores envolvidos são altos. Mas há casos em que mesmo com pouco —ou nenhum— valor, os herdeiros brigam por direitos.
O mais curioso é o de Taiguara, símbolo da resistência à ditadura. Ele morreu em 1996 e, apesar da importância, nunca foi exatamente um grande vendedor de discos.
Em outubro, Imyra Taiguara, filha biológica do cantor, deu início a uma disputa pela página e pelo grupo do artista no Facebook. Seu principal alvo era Moína Potiguara, filha de criação de Taiguara com a ex-mulher, Eliane, que também é mãe de seus outros três filhos biológicos, Lenine, Samora e Tajira Potiguara.
As duas irmãs nasceram em 1976, mas em 1978 o artista passou a conviver mais com Moína, já que havia deixado a mãe de Imyra, para ficar com Eliane no Rio de Janeiro.
No Facebook, Imyra acusou Moína de querer parte dos direitos autorais de Taiguara, quando os filhos foram consultados pelo selo Kuarup sobre o lançamento do EP “Como Lima Barreto”.
Em resposta, Moína publicou fotos de uma carta, supostamente escrita por Taiguara, pedindo a ela que cuidasse de sua obra. Imyra depois a acusou de roubo de documentos e disse que a carta era falsificada, mostrando, letra a letra, como teria sido adulterada.
Como as duas filhas de Taiguara são cantoras, a briga logo passou a ser sobre uma herança imaterial, a do talento do pai. Essa situação se repete também no caso de Tim Maia.
“Ele só é filho do meu pai, não tem a genialidade e nem o dom artístico que tenho”, diz Léo sobre Carmelo. “Poderíamos faturar uma verdadeira fortuna. Mas ele não aceita que o outro tenha talento.”
No caso das filhas de Taiguara, Moína ainda fez um vídeo de mais de uma hora de duração mostrando fotos, áudios e as tais cartas do cantor. O caso envolve acusações de racismo e falsidade ideológica e, apesar de público, pouco tem a ver com a obra do pai ou com alguma fortuna.
O EP “Como Lima Barreto” tem quatro faixas que, juntas, não passam de 5.000 audições no Spotify. Samora Potiguara, filho biológico de Taiguara, vê a disputa como trivial e motivada só por ego, além dos fãs do pai no Facebook. “É decisão delas entrarem com ação uma contra a outra”, diz. “Quem parecer mais verdadeira leva a manada de fãs do Taiguara —que, na verdade, não está nem aqui para se defender.”
No Brasil, o direito autoral é dividido em duas partes, diz Berberi. São o direito moral do autor, que é intransferível, e o direito patrimonial, de exploração econômica da obra antes que vire domínio público.
“Posso, por exemplo, explorar a obra de Machado de Assis, mas não posso dizer que fui eu que escrevi”, diz Berberi.
“Com isso, os herdeiros acabam explorando comercialmente os direitos morais do autor. Eles passam a ter dois direitos: sobre a utilização da obra e sobre autorizações para que a obra seja usada.”
Assim como no caso de Tim, o maior prejuízo é quando uma obra fica inacessível pela falta de acordo entre herdeiros. Os álbuns do cantor, por exemplo, entraram só recentemente nos serviços de streaming.
“Quando você tem uma briga familiar, a obra fica embargada, e você não consegue fazer isso girar. A população fica sem acesso”,diz Berberi.
É assim no caso mais famoso de todos, que envolve os herdeiros de João Gilberto. Os filhos do pai da bossa nova estão em pé de guerra pela administração e exploração dos direitos, e, ao mesmo tempo, estão também em disputa judicial com as gravadoras do cantor. Em meio à briga, grande parte de suas músicas só está disponível hoje por meio de pirataria.
“Vai chegar um momento que a gente não vai ter mais acesso”, diz Berberi. “Ninguém vai querer reproduzir um disco do João Gilberto sem autorização, porque ninguém sabe qual é o risco judicial.”