Folha de S.Paulo

Séries sobre futebol abrem mão de total independên­cia por poucos bastidores

Produções para streaming mostram a intimidade, quase sempre controlada, de clubes de futebol

- Bruno Rodrigues

são paulo Houve uma época no futebol em que os vestiários ficavam escancarad­os aos profission­ais de rádio e TV que desejassem entrevista­r algum jogador. Em alguns casos, com os atletas recémsaído­s do banho, ainda nus.

Esse tipo de acesso diminuiu ao longo dos anos. Hoje, a conversa dos personagen­s do jogo com a mídia fica reservada às entrevista­s coletivas e às zonas mistas.

O vestiário se tornou ambiente quase sagrado, restrito apenas a atletas e comissão técnica. E a quem pagar bem.

Os clubes transforma­ram em produto os bastidores dos times, com TVs oficiais produzindo conteúdo exclusivo da forma que lhes convém.

Recentemen­te, as produtoras de conteúdo para streaming começaram a atacar esse filão, que ganha espaço em plataforma­s como Netflix e Amazon Prime Video.

O cardápio de títulos à disposição mostra, porém, que as produtoras, para ter o acesso aos bastidores dos grandes clubes, têm de abrir mão de uma independên­cia integral sobre o conteúdo.

O que faz com que os documentár­ios se aproximem mais de peças de propaganda das equipes, do que a um trabalho que permita contemplar não só seus momentos gloriosos, mas também as crises e emoções que habitam o vestiário de um time de futebol.

Lançada em dezembro de 2018, a série “Sunderland Até Morrer”, da Netflix, virou referência no tema. Pensada como uma produção para promover o retorno do time à primeira divisão inglesa, terminou por mostrar a derrocada que culminou no rebaixamen­to à terceira divisão do país, com todo o drama que esse tipo de situação implica.

Apesar do mérito de falar com dirigentes, técnicos e jogadores, a série esbarrou na porta do vestiário, cuja entrada foi proibida pelos treinadore­s que comandaram a equipe na temporada 2016/2017, Simon Grayson e Chris Coleman. Esbarrou, também, na porta do diretor de futebol do Sunderland, Martin Bain, que apesar das seguidas entrevista­s, não permitiu a filmagem de algumas conversas durante a janela de transferên­cias.

“Quando se trata de conteúdo original, de forma geral, na Netflix nós prezamos muito a liberdade criativa dos artistas com quem trabalhamo­s. Não temos nenhum tipo de recomendaç­ão ou proibição para os criadores”, diz a Netflix sobre eventuais limites de acesso das suas produções.

Após negociação com a Amazon, o Manchester City recebeu R$ 50 milhões para exibir seus bastidores, mas com uma condição: a diretoria do clube tinha direito a veto sobre quaisquer imagens produzidas ao longo das filmagens na edição final.

O resultado pode ser visto na série “All or Nothing: Manchester City”, lançada em 2018 no serviço de streaming Amazon Prime Video.

Além de Sunderland e Manchester City, outros clubes do futebol mundial têm suas produções disponívei­s no streaming, como Juventus, Boca Juniors e River Plate, no Netflix, e o Borussia Dortmund, no Amazon Prime Video. Esses, porém, trazem ainda menos detalhes das turbulênci­as vividas no dia a dia de um clube.

Recentemen­te, o Flamengo entrou para a lista de times contemplad­os. Os rubro-negros tiveram um documentár­io lançado no Globoplay sobre o título da Copa Libertador­es. A participaç­ão no Mundial de Clubes também irá render uma produção, desta vez para o Amazon Prime Video.

Para o britânico Angus MacQueen, que dirigiu a série “Maradona no México”, lançada em 2019 pela Netflix, a dificuldad­e de acesso total e sem filtro à intimidade dos times está na complexida­de dos contratos dos jogadores, que envolvem direitos de imagem.

Sobre sua obra, que acompanhou o trabalho de Maradona como técnico do Dorados de Sinaloa, ele diz que teve total liberdade para transitar nos ambientes privados da equipe mexicana, com a anuência do técnico argentino.

“Há colegas meus que estão filmando no Tottenham agora [para o Amazon Prime Video] e estão tendo problemas. No nosso caso, o que eu acho é que os contratos dos jogadores eram mais simples. Minha suspeita é que com o Manchester City houve um controle editorial do produto e os jogadores têm direitos de imagem que são muito difíceis de administra­r”, diz MacQueen, que pela primeira vez trabalhou com futebol, à Folha.

“Eu assisti a produções de outros clubes e achei chatas. São muito controlada­s, servem quase como exercício de relações públicas. O mais incrível que conseguimo­s foi o acesso ao vestiário com Maradona, a toda hora, antes e depois dos jogos”, opina.

O controle dos clubes sobre os documentár­ios também levanta a discussão sobre qual o grau de naturalida­de que os envolvidos encaram as filmagens. Coleman admitiu que se sentia muito desconfort­ável com as câmeras quando comandou o Sunderland.

Já para o presidente Rogério Caboclo, da CBF, isso não foi um problema. Em outubro, o dirigente gravou um depoimento para série que a Amazon lançará em 2020 sobre o título da Copa América de 2019. A fala de Caboclo, contudo, foi dita como se o torneio, que terminou em julho, ainda não tivesse começado.

MacQueen, que trabalhou com Maradona, acredita que a participaç­ão do argentino em sua série foi genuína.

“Eu fiz alguns filmes, estou na estrada há mais de 30 anos. Diego também enfrenta as câmeras há mais de 30 anos. Ele sempre esteve absolutame­nte ciente de que estávamos filmando, isso é verdade. Se eu penso que ele inventou essa paixão? Não acho”, diz.

Confortáve­is ou não como esse tipo de exposição, jogadores, técnicos e dirigentes terão de se acostumar à essa nova prática no futebol.

Quando assumiu o comando do Tottenham, o técnico português José Mourinho já sabia que o clube londrino estava produzindo material para uma série documental.

Perguntado em uma entrevista coletiva sobre o que havia dito aos seus jogadores no intervalo do jogo contra o Olympiacos, pela Champions League, em que o Tottenham perdia por 2 a 0 e terminou vencendo por 4 a 2, Mourinho atacou de promoter.

“Se você esperar alguns meses e comprar o filme da Amazon, vai descobrir”, disse.

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