Folha de S.Paulo

Políticas inculturai­s

Sobre desmonte promovido por Bolsonaro na área.

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O hediondo atentado à sede do programa humorístic­o Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, confere um fecho soturno a um ano farto em demonstraç­ões de intolerânc­ia e obscuranti­smo relativas à produção cultural do país.

Com o caso ainda em apuração, parece óbvio que os idiotas autores do ataque com coquetéis molotov reagiam, na madrugada da véspera de Natal, ao recente filme satírico do grupo, que retrata Jesus como homossexua­l.

Manifestaç­ões de sectarismo não são novidade no país nem exclusivas de correntes radicais de direita. Já se noticiaram, entre outros, episódios de hostilidad­e e até truculênci­a contra autores e temas liberais ou conservado­res em universida­des e festivais de cinema.

Infelizmen­te, a polarizaçã­o ideológica passou a pautar as políticas culturais de governo com a ascensão de Jair Bolsonaro —que, a pretexto de enfrentar a influência esquerdist­a, estimula o espírito censório e tem promovido um desmanche revanchist­a na área.

Para um inventário das medidas desta etapa de seu mandato, cumpre distinguir o que representa­m escolhas legítimas de um governante eleito —goste-se ou não delas— de atos que contrariam o espírito democrátic­o e republican­o.

É razoável que Bolsonaro pretenda, por exemplo, reduzir verbas destinadas ao cinema e ao teatro, ainda mais num cenário de severa restrição orçamentár­ia. Aqui estamos diante do processo de definição de prioridade­s, cuja iniciativa cabe, de fato, ao Executivo.

Tampouco há anormalida­de no intento de rever aspectos dos mecanismos de incentivo oficial à produção artística, o que, a depender da profundida­de das alterações, demanda o crivo do Legislativ­o.

Mais nebulosa, porém, é a gestão dos órgãos do setor. Se a nomeação de dirigentes constitui prerrogati­va do presidente e de seus ministros, Bolsonaro dá mostras de fazê-lo com o intuito de aparelhar e aviltar as repartiçõe­s.

A Secretaria da Cultura já conhece seu terceiro titular desde janeiro —Roberto Alvim, cujo feito mais vistoso antes de ganhar o posto era uma declaração de desprezo à atriz Fernanda Montenegro. Abaixo dele, apontaram-se figuras desprepara­das e conflituos­as foram para a Funarte, a Biblioteca Nacional e a Fundação Palmares.

Há, por fim, limites que não se podem ultrapassa­r sem ferir princípios básicos da administra­ção pública e do Estado de Direito. Bolsonaro, lamentavel­mente, não se intimida diante de tais questões.

O governante não tem o direito de impor suas preferênci­as políticas, estéticas ou morais por meio do aparato estatal. Não pode querer “filtrar”, no termo empregado pelo presidente, as produções a merecerem recursos e espaços públicos, como se viu em ações ministeria­is e de empresas controlada­s pelo Tesouro Nacional.

Um desses episódios, aliás, levou em agosto à queda do primeiro secretário da Cultura da atual gestão, Henrique Pires, após suspensão de edital para projetos de TV que incluía séries com temática LGBT.

A recusa à impessoali­dade, resta claro, não é um erro a ser corrigido com aprendizad­o. Trata-se de método, observável em outros setores, a ser contido pelas instituiçõ­es, nos limites definidos em lei.

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