Folha de S.Paulo

As palavras do ano na China

Seleção evidencia desafio de entender o país e o governo

- Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior do diretor-geral da OMC Jaime Spitzcovsk­y Tatiana Prazeres | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tat

Que palavras têm a capacidade de encapsular 2019 para a China? Pelo menos duas instituiçõ­es endossadas pelo governo divulgaram listas com as expressões do ano.

Seleções ecléticas foram apresentad­as tanto pelo Centro Nacional de Monitorame­nto e Pesquisa da Língua quanto pelo Yao Wen Jiao Zi, publicação mensal sobre cultura e língua chinesa.

Parte das listas serve para consolidar a narrativa oficial, unir o país em torno de alguns conceitos e reforçar mensagens.

Algumas palavras remetem a conquistas chinesas. Outras vêm do dia a dia e da cultura da internet. As listas trazem assuntos sérios, mas têm uma pitada de gracejo.

“996” entrou na lista dos destaques do ano. Trata-se de referência a comentário de Jack Ma, fundador do conglomera­do Alibaba, que gerou polêmica ao endossar a jornada de trabalho de 9h da manhã às 9h da noite, 6 dias na semana —prática aparenteme­nte comum no setor de tecnologia na China. Realmente, falou-se muito sobre isso aqui.

Perguntei sobre o assunto a um vizinho, advogado do Alibaba, que sorriu sem graça e disse, em tom de brincadeir­a (ou nem tanto), que o regime de trabalho na empresa não era 996 —mas 007. De zero hora à meia-noite, todos os dias.

Na mesma lista de expressões do ano entrou a frase “A vida é tão dura para mim”, tirada de um vídeo curto que viralizou, com um sujeito exausto como protagonis­ta. O vídeo inspirou uma profusão de memes.

A agenda política, interna e externa, marcou presença entre

as palavras do ano. Uma lista inclui “Parem a violência e ponham fim ao caos”, expressão usada por Xi Jinping durante a cúpula do Brics no Brasil, em sua primeira manifestaç­ão pública sobre a situação de Hong Kong.

As tensões sino-americanas não escaparam às listas. Uma delas inclui “pressão máxima”, “tensões comerciais”. Outra traz “bullying”, também em referência ao assunto.

A pauta econômica se fez presente com “economia noturna”, que, francament­e, não parece uma “buzzword” do ano.

A inclusão da palavra na lista parece servir como lembrete público do interesse do governo em estimular compras, entretenim­ento e alimentaçã­o no período das 18h às 6h, reforçando o consumo para manter a economia aquecida.

Os jovens chineses parecem menos dispostos asairà noite do que gostaria o governo— e, convenhamo­s, um regi mede trabalho 007 ou mesmo 996 não ajuda.

“Ano de estreia do 5G” ganhou destaque, o que não surpreende. 5G é emblemátic­o da condição de nova potência tecnológic­a do país. Apenas no jornal China Daily, 5G apareceu em 512 notícias e artigos neste ano.

Uma boa dose de nacionalis­mo perpassa ambas as listas. Segundo o Centro Nacional de Monitorame­nto e Pesquisa da Língua, “meu povo, meu país” teria sido selecionad­a pelos usuários de internet na China

como a expressão do ano.

Entre as dez expressões da internet estariam ainda “1,4 bilhão de porta-bandeiras” e “siga fiel à sua aspiração original”.

Finalmente, as mascotes dos próximos Jogos Olímpicos e Paraolímpi­cos de Inverno, anunciadas neste ano, aparecem em uma das listas. Olimpíada, ressalte-se, de 2022.

Um panda rechonchud­o e um bebê em formato de lanterna vermelha, Bing Dwen Dwen e Shuey Rhon Rhon, fecham com chave de ouro o estranhame­nto de vários estrangeir­os ao ler sobre essas listas.

A seleção das palavras do ano é evidência da dificuldad­e de entender a China e o que passa pela cabeça daqueles que as endossam.

Resta saber o que os chineses pensam dessas escolhas. Uma hora dessas ainda pergunto ao meu vizinho. Quando conseguir encontrá-lo.

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