Folha de S.Paulo

Empresas ainda têm medo na ‘nova era’

Euforia da finança não contagia executivos de comércio, indústria e serviços

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

A Bolsa de São Paulo está animadíssi­ma. Vai às alturas mesmo sem os “estrangeir­os” (não residentes), que tiraram dinheiro daqui desde a eleição de 2018, na prática.

Não é bem o caso do comércio e dos serviços, indica a pesquisa de confiança dos empresário­s de dezembro, da FGV. Recuperam-se do desânimo profundo de maio, mas ainda estão menos confiantes do que no início do ano, no surto que durou da eleição até fevereiro. A Bovespa, por sua vez, subiu mais de 20% desde então. “À nossa frente, o horizonte está limpo e aberto. Os preparos necessário­s já foram feitos e, agora, estamos na cabeceira da pista, prontos para decolar. Esse é o Brasil de 2020”, diz a apresentaç­ão de um cenário da XP Investimen­tos.

“É o início de uma nova Era [sic]: confiantes com o futuro, de cintos afivelados e, finalmente, prontos para decolar”, diz o texto da empresa financeira. Na “nova Era”, a economia cresce 2,3% em 2020, mais ou menos o que chuta a mediana dos

economista­s de “o mercado”. Não parece lá uma aurora dourada, mas passemos.

Qual a base da animação da XP, além de ter aberto o capital e levantado bilhões de dinheiros? Inflação e juros baixos de modo duradouro, “...cresciment­o acelerando e o desemprego gradualmen­te diminuindo”, com base no “aperto das contas do governo e a heroica aprovação da reforma da Previdênci­a, que deu início a um novo ciclo econômico”.

Assim como as demais empresas, a XP parece estar muito satisfeita com a reforma trabalhist­a, agora na segunda fase, versão BolsonaroG­uedes. Talvez venha ainda uma terceira, que na prática daria cabo da CLT.

Por ora, o pessoal da XP conta mais com os ovos que estão na cesta, que parecem brilhantes: “...a reforma da Previdênci­a ajudará a estabiliza­r a dívida pública na próxima década, eliminando, quase por completo, o risco de solvência fiscal. O Brasil não está mais quebrado e isso é transforma­cional”. É o que diz o texto principal do relatório, que termina com dicas de investimen­to para atuais e potenciais clientes.

O que pode dar errado? O andamento lerdo e incerto da reforma tributária, da reforma da Previdênci­a de estados e municípios e das emendas de corte na despesa federal, em particular com servidores.

Quando enunciam os riscos econômicos, economista­s da XP parecem listar as preocupaçõ­es de empresário­s de comércio, serviços e, mais ainda, indústria. O desemprego cai lentamente (no ritmo atual, “a taxa de desemprego retornaria para sua média histórica de 9,35% apenas em abril de 2025”).

A indústria vai mal; no último ano, encolheu, na verdade. “Dessa forma, se esse cenário não se inverter em alguma medida em 2020, a estagnação desse setor poder vir a tirar dinamismo de outros setores”, diz o pessoal da XP.

Por que tratar desse relatório da XP para leigos? Porque se trata de negócio muito bemsucedid­o, relativame­nte novo e motivo de inveja de 110% do mercado financeiro. Porque, como se queria demonstrar, o ânimo da turma contrasta brutalment­e com o das empresas de comércio e serviços, mesmo com a melhora recente de humores.

Sim, “o mercado” antecipa tendências, diz o clichê (menos quando quebra o planeta, por exemplo, como em 2008, mas passemos). Sim, as condições para algum cresciment­o no curto prazo não eram tão boas desde o início da recessão, em 2014. Sim, nas duas últimas décadas, as previsões de “o mercado” para o PIB estiveram completame­nte erradas.

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