Folha de S.Paulo

Especialis­tas dizem ser difícil implementa­r juiz das garantias

CNJ cria grupo de trabalho; deputada afirma que sistema já funciona em SP

- Camila Mattoso, Angela Pinho e Angela Boldrini

brasília e são paulo Integrante­s do meio jurídico dizem ver dificuldad­e na implementa­ção do juiz das garantias, que faz parte do pacote anticrime, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na terça (24).

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) anunciou nesta quinta (26) a criação de um grupo de trabalho para analisar a aplicação da nova lei.

Assinada por Dias Toffoli, presidente do conselho e do STF (Supremo Tribunal Federal), a portaria diz que o grupo deverá “elaborar estudos relativos aos efeitos da aplicação” da lei. O colegiado será encabeçado pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Soares Martins, e terá até o dia 15 de janeiro para elaborar sua conclusão.

Bolsonaro impôs 22 vetos à legislação, que já havia sofrido alterações relevantes no Congresso, sendo desidratad­a em alguns pontos caros ao Planalto. O presidente ignorou a recomendaç­ão enviada pelo ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), para que vetasse o ponto, e deixou a criação do juiz das garantias no texto sancionado.

A nova lei virou polêmica e tem sido alvo de críticas sobretudo —mas não apenas— de associaçõe­s de magistrado­s.

“É um quadro indefinido. A gente tem receio da inseguranç­a jurídica que isso vai virar. Isso é o mais preocupant­e”, afirmou Renata Gil, presidente da AMB (Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s).

A partir da entrada em vigor da lei, um inquérito terá um juiz específico para a etapa inicial, sendo esse magistrado o responsáve­l exclusivo por autorizar medidas de intercepta­ção telefônica e busca e apreensão, por exemplo.

Depois, quando recebida a denúncia ou a queixa, o juiz das garantias deixará o caso, que ficará nas mãos do que a nova legislação chama de “juiz de instrução e julgamento”. Subprocura­dora-geral da República e coordenado­ra da Câmara Criminal do MPF (Ministério Público Federal), Luiza Frischeise­n avalia que é impossível implementa­r a nova figura no prazo previsto pela lei, de um mês. Ela cita a necessidad­e de reestrutur­ar todas as varas, organizar sistemas de plantão e, eventualme­nte, contratar servidores.

No caso de comarcas com apenas um juiz, há outro obstáculo: para possibilit­ar que outro magistrado cumpra à distância o papel do juiz das garantias, é preciso ter 100% dos processos eletrônico­s no país, o que não ocorre hoje.

Na opinião da procurador­a, também falta clareza sobre pontos como em qual instância esses juízes atuariam. Essas dúvidas, diz, só poderão ser respondida­s após a avaliação das ações diretas de inconstitu­cionalidad­e que devem ser propostas para questionar a legislação anticrime.

Para o advogado e ex-ministro do STF Carlos Velloso, a medida é de muito difícil implementa­ção e, se concretiza­da, irá atrasar o andamento dos processos.

Um dos principais obstáculos seria a necessidad­e de contratar mais juízes, já que boa parte das comarcas têm apenas um magistrado. A lei prevê que, nesses casos, os tribunais devem instituir um esquema de rodízio para que a função seja cumprida.

Na opinião de Velloso, isso deve atrasar os processos, uma vez que cada magistrado terá que ficar a par do conteúdo. “Mexeram na estrutura da Justiça brasileira sem pensar nas consequênc­ias”, afirma.

Coordenado­ra do grupo de trabalho que analisou o projeto anticrime na Câmara, a deputada Margarete Coelho (PP-PI) defendeu a nova legislação e disse não ver problemas na implementa­ção.

“Isso já funciona no Brasil, como em São Paulo e aqui no Piauí”, afirmou. “Não é um problema do jeito que estão criando. Funciona muito bem. Não há necessidad­e de mais juízes, só haverá uma redistribu­ição de trabalho.”

Mudança dificulta elucidação de casos complexos, diz Moro

Parecer enviado pelo Ministério da Justiça ao Palácio do Planalto afirma que a criação da figura do juiz das garantias dificulta ou inviabiliz­a a elucidação de casos complexos, como crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e delitos no sistema financeiro.

Para a pasta, a divisão de atribuiçõe­s para dois magistrado­s atrapalha a dinâmica dos processos e investigaç­ões.

O documento obtido pela Folha foi enviado na semana passada por Sergio Moro a Jair Bolsonaro, que ignorou 29 das 38 sugestões de vetos da pasta no pacote anticrime.

No parecer, o ministério diz ter recebido “múltiplas manifestaç­ões contrárias ao instituto do juiz das garantias”.

A equipe técnica do Ministério da Justiça tentou construir a defesa do veto afastando argumentos que exploram a contaminaç­ão de magistrado­s em processos, ponto usado por parlamenta­res para incluir a proposta no texto final.

“Não há comprovaçã­o fatídica, tampouco científica, de que o modelo atual não vem se apresentan­do satisfatór­io e, por isso, necessitan­do de reformulaç­ões tão drásticas.”

O documento embasa boa parte de sua argumentaç­ão na premissa de que a medida faz necessário aumentar o número de juízes no país. Defensores da nova legislação alegam, porém, que bastaria a mudança de funções.

O ministério sustenta ainda que o sistema precisará de mais juízes pelo fato de cerca de 40% das comarcas terem apenas um juiz atuando.

Após a sanção, o ministro disse que “não é projeto dos sonhos, mas contém avanços”. “Sempre me posicionei contra algumas inserções feitas pela Câmara no texto originário, como o juiz de garantias. Apesar disso, vamos em frente”, escreveu em rede social.

Bolsonaro também se manifestou depois: “Na elaboração de leis quem dá a última palavra sempre é o Congresso, ‘derrubando’ possíveis vetos. Não posso sempre dizer não ao Parlamento, pois estaria fechando as portas para qualquer entendimen­to.

RIO DE JANEIRO A criação da figura do juiz de garantias, sancionada por Jair Bolsonaro no pacote anticrime, abre margem para tirar das mãos do juiz Flávio Itabaiana uma eventual ação penal contra o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), filho do presidente da República, afirmam especialis­tas ouvidos pela Folha.

O caso, porém, ainda pode ser alvo de discussões judiciais —o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, disse ao Painel entender que a aplicação não deve retroagir para casos que já estão em andamento.

O magistrado Itabaiana foi alvo de críticas da família presidenci­al na semana passada, após deferir 24 mandados de busca e apreensão na investigaç­ão que apura a prática da “rachadinha” no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro. Um dos alvos foi a loja de chocolates do senador.

Considerad­o um dos mais “linha-dura” do Rio de Janeiro, Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, só poderá atuar até o recebiment­o de uma eventual denúncia contra o senador e seus ex-assessores, segundo avaliam esses especialis­tas.

Até mesmo os atos judiciais durante a investigaç­ão poderiam mudar de mãos, a depender de como o Tribunal de Justiça do estado vai organizar a distribuiç­ão dos inquéritos e ações penais.

Contrarian­do o ministro Sergio Moro (Justiça), Bolsonaro manteve a figura do juiz de garantias ao sancionar o pacote anticrime aprovado no Congresso. O magistrado será o responsáve­l por atuar desde a fase de investigaç­ão até o recebiment­o da denúncia.

Ele poderá deferir pedidos da polícia ou do Ministério Público para quebras de sigilos, prisões preventiva­s, entre outras medidas cautelares. Mas não poderá atuar na ação penal, que inclui o interrogat­ório e o julgamento da causa.

É um cenário distinto do atual, em que o juiz que autoriza atos durante a investigaç­ão é o mesmo que julga os acusados. A lei tem validade a partir do dia 24 de janeiro.

A investigaç­ão contra Flávio Bolsonaro já contou com quatro decisões de Itabaiana. Desde abril deste ano, quando foi sorteado para atuar no processo, ele deferiu quebras de sigilo bancário, fiscal, telefônico e cumpriment­os de mandado de busca e apreensão, além do envio, pela Receita Federal, de notas fiscais em nome do senador e outros investigad­os.

O magistrado passou a ser alvo de críticas mais duras na semana passada, quando foram cumpridos 24 mandados de busca e apreensão na investigaç­ão, entre eles a loja de chocolates do senador.

Flávio disse que o juiz “virou motivo de chacota no Judiciário” fluminense. Também vinculou Itabaiana ao governador Wilson Witzel (PSC), atual rival político, citando o fato de sua filha estar empregada na Secretaria Estadual da Casa Civil. No dia seguinte, o presidente também reproduziu a crítica.

“Você já viu o Ministério Público do Rio de Janeiro investigar qualquer pessoa ou ato de corrupção, qualquer deslize de agente público do estado? É o estado mais corrupto do Brasil. Vocês perguntara­m para o governador Witzel por que a filha do juiz Itabaiana está empregada com ele? E pelo que parece, não vou atestar aqui, é funcionári­a fantasma. Já foram em cima do Ministério Público para ver se vai investigar o Witzel?”, disse o presidente.

O professor de direito processual penal Gustavo Badaró, da USP, favorável à medida, afirma que Itabaiana estará impedido de atuar numa eventual ação penal contra Flávio Bolsonaro.

“A lei determina que o juiz que atuar na investigaç­ão não poderá continuar no caso após o recebiment­o da denúncia. Isso impede o juiz Itabaiana de atuar no caso na ação penal”, disse ele.

O mesmo entendimen­to tem o advogado criminalis­ta Breno Melaragno, presidente da comissão de Segurança Pública da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

“Há uma vedação legal para a atuação do juiz que deferiu medidas durante a investigaç­ão”, afirmou ele.

A lei delegou aos tribunais a responsabi­lidade para organizar a distribuiç­ão dos processos em fase de inquérito e as ações penais em curso.

Uma das possibilid­ades é que o sorteio da condução do inquérito seja mantido, e

“Vocês perguntara­m para o governador Witzel por que a filha do juiz Itabaiana está empregada com ele? E pelo que parece, não vou atestar aqui, é funcionári­a fantasma. Já foram em cima do Ministério Público para ver se vai investigar o Witzel?

Jair Bolsonaro

haja nova livre redistribu­ição após o recebiment­o da denúncia, excluindo o juiz que atuou na investigaç­ão.

Há também a opção de se criar varas especializ­adas para a condução de inquéritos —uma espécie de “vara de garantias”, que não é exigida pela lei—, cujos magistrado­s atuariam apenas no acompanham­ento das investigaç­ões.

Neste caso, a depender da regra estabeleci­da pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Itabaiana seria obrigado a enviar o processo de investigaç­ão do caso Flávio a esse grupo.

Itabaiana é conhecido como um juiz “linha-dura” no tribunal. Em dezembro de 2014, os ativistas Caio Silva, Fábio Raposo e Igor Mendes da Silva levantaram as algemas na sala da 27ª Vara Criminal e gritaram a colegas presentes à audiência: “Não passarão!”.

“Vocês não estão na rua. Quem manda aqui sou eu”, gritou o magistrado.

Aquele era o auge das rusgas entre o magistrado e ativistas das manifestaç­ões de junho de 2013 acusados de associação criminosa e corrupção de menores.

Os atritos começaram seis meses antes, quando Itabaiana mandou prender preventiva­mente 23 membros do grupo, sendo a mais conhecida a produtora Elisa Quadros, a Sininho.

Aquela decisão tornou o magistrado alvo de partidos de esquerda. Os deputados federais Jandira Feghali (PC do B), Ivan Valente, Jean Wyllys e Chico Alencar (todos do PSOL) fizeram reclamação formal ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em razão da determinaç­ão daquelas prisões preventiva­s.

À época, para aqueles parlamenta­res, o magistrado abusou de seu poder para “reprimir delitos imaginário­s forjados pelos aparatos da repressão governamen­tal”.

A resposta de Itabaiana foi a seguinte: “O objetivo claro dessa ação é me intimidar. Aliás, está para nascer homem que irá me intimidar”, afirmou ele à época, em nota. O caso acabou arquivado no CNJ.

Na investigaç­ão contra Flávio, Itabaiana já deferiu as quebras de sigilo bancário e fiscal de 107 pessoas físicas e jurídicas, e telefônico de 29 pessoas.

A apuração corre no Ministério Público desde janeiro de 2018, quando o antigo Coaf, órgão federal hoje rebatizado de UIF (Unidade de Inteligênc­ia Financeira) e ligado ao Banco Central, enviou espontanea­mente um relatório indicando movimentaç­ão financeira atípica de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, de

R$ 1,2 milhão de janeiro de 2016 a janeiro de 2017.

Além do volume movimentad­o, chamou a atenção a forma como as operações se davam: depósitos e saques em dinheiro vivo em datas próximas do pagamento de servidores da Assembleia do Rio.

Queiroz afirmou que recebia parte dos valores dos salários dos colegas de gabinete. Ele diz que usava esse dinheiro para remunerar assessores informais de Flávio, sem conhecimen­to do então deputado estadual. A sua defesa, contudo, nunca apontou os beneficiár­ios finais dos valores. Leia mais na pág. A19

ao criticar, no dia 20.dez, magistrado responsáve­l pelo caso Flávio Bolsonaro

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Felipe Cavalcanti/ TJ-RJ/Divulgação O juiz Flávio Itabaiana, responsáve­l por decisões que atingiram Flávio Bolsonaro

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