Folha de S.Paulo

Ano quase perfeito do Flamengo

Postura da diretoria com famílias do incêndio no Ninho mancha a temporada

- Renata Mendonça Jornalista, passou por ESPN e BBC. Escreve no Dibradoras, blog sobre mulheres no esporte

Campeão brasileiro, campeão da Libertador­es, campeão estadual. Recorde de pontos somados no torneio nacional, recorde de gols marcados e um estilo de jogo envolvente que colocou o time “em outro patamar”. Teria sido o ano perfeito para o Flamengo, clube que se reconstrui­u na última década e colheu os principais frutos de tudo isso em 2019.

E não, não foi o gol de Roberto Firmino para o Liverpool naquela final do Mundial que estragou essa temporada fora de série do rubro-negro em campo. Foi a postura dele fora das quatro linhas que deixa uma mancha num ano que era para terminar apenas com choro de comemoraçõ­es, e não de tristeza.

“Você vê a alegria de uns e só consegue sentir sua própria tristeza”, disse uma das mães dos “meninos do Ninho” em entrevista ao UOL. Os pais dos garotos que morreram no trágico incêndio do Ninho do Urubu em fevereiro não conseguira­m comemorar nenhum dos títulos do Flamengo neste ano. No aguardo do acordo para o pagamento das indenizaçõ­es, esses pais sofrem até mesmo com o sucesso do clube que nega o mínimo do consolo que lhes é de direito.

Houve uma tentativa de acordo proposto pelo Ministério Público pedindo ao clube o pagamento de R$ 2 milhões para cada família dos meninos mortos e uma “pensão” de R$ 10 mil por mês até o dia em que eles tivessem 45 anos. O Flamengo recusou e carregou ao longo de todo esse ano um imbróglio na Justiça para definir o que pagará aos familiares dos meninos do Ninho. Naquele dia, o fogo tomou não apenas as vidas daqueles que estavam ali, mas também os sonhos que eles alimentava­m nos campos daquele CT.

E aquelas mesmas chamas levaram a alegria e o orgulho que os pais dos garotos tinham toda vez que eles voltavam para casa. Eles não vão mais voltar. E não é que uma indenizaçã­o possa amenizar essa dor. Mas essa é a forma que o clube teria de demonstrar o mínimo de acolhiment­o e respeito pelas famílias prejudicad­as por uma tragédia que aconteceu nas suas dependênci­as.

Após balanço divulgado no terceiro trimestre deste ano, o Flamengo já havia arrecadado R$ 652 milhões em 2019, o maior valor entre todos os clubes brasileiro­s —isso representa R$ 200 milhões a mais do que o Palmeiras, segundo colocado nesse quesito. E isso tudo veio antes da confirmaçã­o dos dois títulos faturados pelo clube carioca nesta temporada. A premiação do Brasileiro foi de R$ 33 milhões, e a da Libertador­es foi de R$ 85 milhões.

Todas essas cifras mostram que o Flamengo está longe de passar qualquer apuro financeiro. Ainda em agosto, o rubro-negro já tinha R$ 75 milhões de lucro garantidos. Será mesmo que está faltando dinheiro para finalmente pagar a indenizaçã­o que essas famílias merecem?

Essas mães e pais já perderam seus filhos de maneira tão traumática e agora todos os dias precisam ler e assistir ao noticiário que ressalta as glórias e o sucesso do Flamengo em 2019. Como seria possível para eles celebrar um título do clube que paga salários milionário­s para manter um dos elencos mais caros do Brasil, mas se recusa a bancar as indenizaçõ­es pelos meninos mortos naquele incêndio?

Esse ano poderia ter sido perfeito para o Flamengo, mas por omissão e falta de sensibilid­ade de seus dirigentes, há pelo menos dez famílias que não puderam sequer sorrir com as conquistas que vieram nos gramados. Um clube que foi tão grande em campo, pode ser ainda maior fora dele quando resolver isso.

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