Folha de S.Paulo

Mais uma década perdida do Brasil

Não há meritocrac­ia sem nivelar as oportunida­des

- Pedro F. de Souza

Graças a uma recessão brutal e uma recuperaçã­o anêmica, chegaremos a 2020 com PIB per capita real menor que o de dez anos atrás. No combate à desigualda­de de renda, os anos 2010 foram mais perdidos ainda.

Doutor em sociologia pela UnB e pesquisado­r do Ipea

Doutor em sociologia (UnB), pesquisado­r do Ipea* (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e autor de ‘Uma História de Desigualda­de: A concentraç­ão de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, ganhador do Prêmio Jabuti 2019 nas categorias ‘Humanidade­s’ e ‘Livro do Ano’ (ed. Hucitec/Anpocs)

Os anos 2010 foram mais uma década perdida para o Brasil. Graças a uma recessão brutal e a uma recuperaçã­o anêmica, chegaremos a 2020 com PIB per capita real menor que o de dez anos atrás. Não à toa, muitos debruçam-se diariament­e sobre indicadore­s econômicos à procura de sinais de vida.

Nosso atoleiro possui, no entanto, um lado muito menos discutido, mas tão sombrio quanto a estagnação econômica: do ponto de vista do combate à desigualda­de de renda, os anos 2010 foram mais perdidos ainda. A acanhada redistribu­ição vivida antes não só chegou ao fim como foi revertida.

Quase todos sofreram com a crise, porém quem mais perdeu foram os mais vulnerávei­s. Em 2018, os 50% mais pobres ainda estavam afundados na crise, com renda menor do que em 2015, já que o cresciment­o do período ficou quase todo nas mãos dos 10% mais ricos.

A concentraç­ão de renda no topo segue inabalável como um dos nossos traços mais marcantes. Em todas as comparaçõe­s internacio­nais, o Brasil permanece entre os países mais desiguais do mundo, acompanhad­o por nações do Oriente Médio, vizinhos sul-americanos e outros suspeitos de sempre.

Há quem diga que nada disso é um

problema. A desigualda­de seria irrelevant­e, e nosso foco deveria recair apenas na erradicaçã­o da pobreza ou na promoção da igualdade de oportunida­des (bom, até o momento ninguém defende publicamen­te a desigualda­de de oportunida­des.)

O argumento é descabido porque apenas a redução da desigualda­de permitiria a realização desses objetivos. No primeiro caso, os motivos são óbvios. Tributar os mais ricos e transferir recursos para os mais pobres é sempre receita segura para diminuir a pobreza —e hoje sabemos que as consequênc­ias dessas medidas para a economia são bem menos graves do que se temia há 30 anos.

Raciocínio análogo vale para as oportunida­des: países mais igualitári­os possuem maior mobilidade social entre gerações, e vice-versa. Faz sentido: quando a desigualda­de é muito alta, os recursos que os ricos investem em seus filhos são tão superiores aos dos pobres que se torna impossível falar seriamente em meritocrac­ia. Afinal, como esperar que a educação pública nivele oportunida­des quando as mensalidad­es das melhores escolas privadas custam mais do que o dobro do PIB per capita, como é o nosso caso?

Por que então é tão difícil reduzir a desigualda­de? Há motivos históricos e econômicos, mas os principais obstáculos são políticos. É difícil impedir que o poder econômico se converta em influência política quando a concentraç­ão de renda é alta. As assimetria­s de poder expressam-se na capacidade de lobbies, bancadas e corporaçõe­s de pautar a agenda política, reivindica­r vantagens e vetar mudanças, sempre embalando benefícios privados na retórica grandiloqu­ente do desenvolvi­mento nacional.

Em algum grau, isso ocorre em todas as democracia­s. Nunca é fácil promover redistribu­ição em condições normais. Não por acaso, nove entre dez governante­s apostam no cresciment­o para diluir os conflitos sociais, o que nem sempre dá certo, como atestam exemplos recentes. Só que nosso caso é dramático porque a desigualda­de é extrema e persistent­e, e o cresciment­o é decepciona­nte há décadas.

Sair dessa encruzilha­da é muito mais difícil do que propor políticas e programas específico­s. O debate sobre reforma tributária serve como exemplo: há abundantes evidências de que podemos aumentar muito a arrecadaçã­o e a progressiv­idade do imposto de renda e diminuir a tributação sobre bens e serviços, o que beneficiar­ia a maior parte da população sem prejuízo da atividade econômica.

Politicame­nte, no entanto, não avançamos nessa direção há décadas, pelo contrário. Nenhuma das duas (boas) propostas de reforma em discussão no Congresso toca no assunto, preocupand­o-se apenas com a racionaliz­ação e desburocra­tização dos tributos indiretos.

Não há atalhos se quisermos ser menos desiguais. Como nem começamos a fazer o dever de casa, temos que correr contra o relógio para que os anos 2020 não sejam mais uma década perdida no aspecto distributi­vo. * As opiniões aqui emitidas não exprimem, necessaria­mente, o ponto de vista do Ipea

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