Folha de S.Paulo

Debate sobre limites e pedofilia chega ao mundo de concursos de beleza infantil e teen Brasil afora Pequenas misses

Incentivad­as por pais, meninas começam a competir com 4 anos e a se preocupar com peso; especialis­tas criticam

- Anna Virginia Balloussie­r

natal “É tipo a cara de quem está tentando fazer cocô”, ela explica seu macete para dar o famoso “sorriso de miss”, com muita dentição à mostra.

Neste concurso de beleza, vários dentes são de leite. No Miss Teen/Infantil Brasil, com final num resort em Natal, são quatro categorias: mirim (4 a 7 anos), infantil (8 a 10), préteen (11 a 13) e teen (14 a 18).

Na faixa caçulinha, o anúncio da campeã, a paulista, leva a lágrimas não só de emoção. Algumas crianças que perderam choram e pedem a mãe.

Se nem sempre gente grande sabe lidar com a pressão e a consequent­e frustração da derrota, as pequenas parecem sentir mais. Quanto mais velhas as concorrent­es são, menos cara de choro se vê.

As conversas, aí, migram para cortar doces da dieta, ou a rival que estaria acima do peso. Do que adianta ter bumbum e peito se você é gorda?, questiona uma participan­te de 10 anos ao ver as meninas de 14 a 18 anos serpentear­em o palco em moda praia.

Na fileira de trás da plateia, a parente de uma das competidor­as avalia que uma das aspirantes a miss teria mais chances “se pentear os cabelos”. São crespos.

Em setembro, Silvio Santos tascou gasolina num debate já incendiári­o: se concursos dessa natureza são saudáveis para menores de idade, e em que grau eles podem estimular a sexualizaç­ão precoce e até atrair pedófilos.

O dono do SBT é alvo de uma investigaç­ão do Ministério Público de São Paulo por um torneio de miss infantil apresentad­o em seu programa. A cerpreciso­u ta altura, Silvio joga para o auditório: “Agora vocês, que estão com o aparelhinh­o [para votar], vão ver quem tem as pernas mais bonitas, o colo mais bonito, o rosto mais bonito e o conjunto mais bonito”.

O Brasil não monopoliza essa polêmica. O reality americano “Toddlers and Tiaras” (2009-16), que trazia bastidores de competiçõe­s mirins, tem um acervo delas.

Se até injeções de botox em crianças se tem notícia lá fora, a versão brasileira explicita no regulament­o o veto a crianças de biquíni ou maiô, inclusive nas redes sociais. Frisa-se que as imagens “podem ser usadas por pessoas mal intenciona­das fora de contexto e em situações impróprias, causando constrangi­mento público à criança”, o que é proibido pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescent­e).

A regra vale para as participan­tes de 4 a 13 anos. Está tudo liberado para as adolescent­es, que desfilam com biquínis a milímetros do fio dental.

Mãe de uma mini-Miss São Paulo, a empresária Elaine, 37, ela própria coroada na juventude, acha que está “tudo mais sensualiza­do”. Na época dela, era um maiô e olha lá.

A filha de 10 anos, que pratica hipismo e define uma boa campeã como “uma menina elegante e educada”, é fã de tutoriais de beleza do YouTube. Enfiada num vestido de plumas brancas que custou $ 2.200, ela já apresentou à mãe a escovinha de limpeza facial favorita das blogueiras.

A advogada Ana Carolina, 46, diz se preocupar em manter o ambiente saudável para a filha —que acabaria a noite em segundo. “Falo: papai do céu que sabe o que acontece, você tá aqui pra se divertir, ninguém só ganha”.

Elaine faz coro. “Tem que ser uma brincadeir­a. Quando

vira obrigação, fica chato.”

As duas garotas têm conta no Instagram, e por lá vez ou outra pipocam comentário­s de teor pedófilo. Como na vez em que a filha de Ana Carolina posou ao lado de uma atriz para fazer propaganda.

A mais velha estava vestida de pizza, a criança, de cachorro-quente. Um homem reagiu à foto: “Essa já está no ponto, a outra [a menor], não”. A mãe deletou assim que viu.

Apesar de proibido no regulament­o, mesmo as pequeninas fizeram um ensaio com maiô, todos em tom rosado. Os retratos acontecera­m no resort onde se hospedaram a pedido da organizaçã­o (cada uma bancando a própria parte, fora algumas centenas de reais pela inscrição).

Segundo Gerson Antonelli, diretor nacional do concurso, “a organizaçã­o não dá respaldo a esse tipo de coisa”.

Para a final, cada criança levar três trocas de roupa: a de abertura, um “vestido curto rodado (princesa) na cor branca”, o de gala, que as deixava parecendo cópias de mocinhas da Disney, e um “traje esporte de sua escolha”.

Maria Cleonice, 57, é avó da candidata potiguar, que mal saíra da chupeta quando começou a “carreira”. Mostra duas fotos da neta de cinco anos: ela fantasiada de Frida Kahlo, num duelo em que ganhou como Miss Simpatia, e comemorand­o três anos com festa da Barbie, seu ideal de beleza.

Maria, que na mocidade também competiu (“fui Rainha Industriár­ia”), conta que passou um pito na maquiadora oficial do concurso. A mulher, diz, recebeu dela R$ 300 para pintar a neta nos três dias de evento. Na primeira noite, colocou cílios postiços na menina. “Aqui ela tá criança, ali, miniadulta”, diz a avó, exibindo fotos do antes e depois.

As derrotas nem sempre são bem digeridas em Natal. Mãe de uma candidata que saiu de mãos abanando, Ana Paula, 34, reclamava nos bastidores que o saiote do vestido da menina sumiu e que ela pagaria R$ 1.000 se não o achasse, já que o traje era alugado.

Puxa de canto o produtor artístico do campeonato, Marcelo de Oliveira, 50, que encorajava as concorrent­es a pedir dinheiro ao Papai Noel já pensando na inscrição para 2020.

Ana critica o jeito “seco, frio” de anunciar as vencedoras. Por que não dizer as três melhores colocadas? Isso desincenti­va a criançada, diz. “Não precisa de coroa, só faixinha.”

Depois, nas redes sociais, ficaríamos sabendo o top 3 de cada categoria. A filha dela não estava nele.

A Miss Amapá mirim, 6, já dizia querer “ser top” aos dois anos, conta a mãe, a médica Fernanda, 40, enquanto a pequena abre um espacate.

Cabelos na cintura e camiseta onde se lê “fashion devotion” (devoção à moda), ela se mostra confiante. Perdeu e postou dias depois numa rede social, sob uma foto sua: “Competir sempre, vencer talvez, desistir, NUNCA!”.

“Criança não precisa se preocupar com os padrões de beleza. Ao se fazer um concurso, você começa a estabelece­r padrões”, diz Ênio Roberto de Andrade, psiquiatra infantil do Instituto de Psiquiatri­a do Hospital das Clínicas. Sem “recursos emocionais”, podem desenvolve­r de ansiedade a depressão, afirma.

E tem a questão do trabalho, lembra a procurador­a Ana Maria Villa Real, titular da Coordenado­ria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescent­e.

“Casos em que crianças e adolescent­es possam estar sujeitas a erotização e sexualizaç­ão precoces, a desgastes emocionais, constrangi­mentos, merecem a máxima atenção de todos os órgãos integrante­s da rede de proteção.”

As adolescent­es que desfilaram de biquíni no Miss Teen Brasil, de 14 a 18 anos, também devem ser protegidas, segundo Villa Real. Isso as sujeita a “possíveis situações de exposição desnecessá­rias para a faixa etária, com as quais sequer estão preparadas para lidar”.

Gerson, o manda-chuva do concurso, diz que o “foco são as crianças, sua segurança e incentivar o espírito de competição saudável e amizade”. “Mas alguns pais são muito competitiv­os.”

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Raul Spinassé/Folhapress Participan­tes de 11 a 13 anos de concurso de miss mirim esperam resultado

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