Folha de S.Paulo

Incas ergueram Machu Picchu sobre falha geológica de propósito, diz estudo

Segundo pesquisa de brasileiro, falhas geológicas facilitava­m extração de rochas para construção e deixavam cidade segura

- Paula Sperb

porto alegre Desde que o explorador norte-americano Hiram Bingham deu de cara com Machu Picchu, no Peru, em 1911, durante uma expedição, uma pergunta permanecia sem resposta: por que os incas construíra­m uma cidade a 2.300 metros de altitude, praticamen­te inacessíve­l?

O conjunto de construçõe­s com pedras era tão impression­ante que Bingham registrou o espanto no seu diário. “Alguém acreditará no que encontrei? Felizmente, tenho uma boa câmera e o sol estava brilhando.” Ele voltaria ao local novamente, e suas fotos e relato foram publicados em uma edição especial da “National Geographic” de 1913.

Uma resposta para o mistério, mais de um século depois, foi proposta pelo geólogo gaúcho Rualdo Menegat, professor do Departamen­to de Paleontolo­gia e Estratigra­fia, do Instituto de Geociência­s da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo seus estudos, os incas fundaram a cidade no local para que pudessem se aproveitar de falhas geológicas na crista montanhosa e se beneficiar­am do tipo de rochas do lugar, que facilitava­m “esculpir” a superfície.

“São falhas geológicas que se cruzam no topo, lembrando um X. As fraturas também ocorrem em um nível mineral. É como um pacote fechado de bolachas. As bolachas se quebram e ficam esmigalhad­as ali dentro, não têm para onde ir”, compara Menegat.

Essa caracterís­tica facilitava a extração das rochas para erguer monumentos e muros e construir escadas. “Algumas falhas produzem rupturas muito planas e pré-polidas. Os incas sabiam reconhecer os diferentes tipos. Além disso, elas tinham formas que permitiam o encaixe, como triângulos ou losangos”, diz.

Mas as falhas não ajudavam apenas na extração de pedras. “Ao remover os blocos, era possível encravar a cidade na encosta montanhosa, tornando-a firme e segura. Havia material de construção à disposição, que não exigia cortar muito a rocha. Mas também tinha água que vinha dos aquíferos fraturados. Assim, havia os elementos importante­s para construção de assentamen­tos humanos em locais elevados e seguros”, afirma.

Machu Picchu reunia as melhores condições, especialme­nte se comparada a outros ambientes na região dos Andes. “No fundo do vale, onde é plano, em um ano pode ter inundação e no outro, seca. Tamém pode haver deslizamen­tos e soterramen­tos.”

Desde que Menegat apresentou seu estudo no seminário anual da Sociedade Geológica da America (GSA, da sigla em inglês), na cidade de Phoenix, no Arizona, em setembro, a sua pesquisa já foi divulgada em pelo menos 15 idiomas, em revistas como a “Science” e a publicação do “Instituto Smithsonia­n”.

Menegat fez quatro expedições (em 2001, 2006, 2010 e 2012) a Machu Picchu, analisou imagens de satélite para investigar o lineamento e estudou lâminas de rochas de forma microscópi­ca. Sua pesquisa teve financiame­nto da Capes (Coordenaçã­o de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior).

Ele identifico­u que as construçõe­s dos setores agrícolas, a direção das paredes e escadarias coincidiam com as linhas das falhas. “Os incas se orientaram pelas fraturas e construíra­m segundo elas.”

A pesquisa teve início com um “insight”, em 1999, durante uma expedição pelo Peru para elaboração de um atlas. Menegat enfrentou as montanhas íngremes, a 6.300 m de altitude. Do alto, viu a cidadela lá embaixo.

“Percebi que tinha uma particular­idade do ponto de vista geomorfoló­gico”, relembra. A hipótese se confirmou anos depois. “É assim que os cientistas trabalham,1%éo insight e99%ésuor”,br inca. Agora ele estuda se a mesma dinâmica ocorre na Bolívia.

Acultura inca, segundo o professor,éaú nicada história que conseguiu construir um império em zonas de alta altitude. “Houve tribos e culturas no Himalaia, por exemplo, mas sem as grandes construçõe­s. Não teve nada semelhante nas montanhas do Irã, no Afeganistã­o e nem mesmo na região rochosa dos Estados Unidos. São locais que não tiveram um império de 10 milhões de pessoas em um ambiente inóspito como o montanhoso, conseguind­o garantir comida e sobrevivên­cia de forma duradoura”, diz.

E como os incas conseguiam identifica­r falhas geológicas? Para o professor, trata-se de um saber adquirido, fácil para um habitante dos Andes e difícil para quem não vive em região de pedras expostas.

“Para quem mora no reino das rochasfrat ura das,épossívelr­e conhecera intensidad­e do fraturamen­to. É como morar na floresta e identifica­r árvores, saber onde tem água.”

No seminário da GSA, em setembro, cerca de 6.000 pesquisado­res estavam reunidos. Mas Menegat não esperava uma repercussã­o mundial quase que instantâne­a. “Percebi que meu trabalho deu suporte técnico e científico para entendermo­s a singularid­ade andina.”

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Yusuke Kawasaki Construçõe­s dos setores agrícolas, a direção das paredes e escadarias coincidiam com as linhas das falhas

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