Folha de S.Paulo

Debate sobre armas ignora feminicídi­os

Em casa, podem ser última instância de ciclo nefasto

- Carolina Ricardo, Natália Pollachi e Conceição de Maria Andrade

Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Coordenado­ra de projetos do Instituto Sou da Paz

Superinten­dente-geral do Instituto Maria da Penha

Alessandra Florino, Mariana Mafei, Silvana Jesus. Mortas há algumas semanas por serem mulheres. Cabe lembrar que, diferentem­ente dos homicídios de mulheres, o feminicídi­o é um crime de ódio ao gênero feminino. Ainda não há dados nacionais de 2019, mas esse tipo de crime cresceu 27% em São Paulo e 10% no Distrito Federal. Muitos fatores contribuem para isso, e entre eles estão a banalizaçã­o do acesso a armas de fogo e um padrão violento de masculinid­ade.

O Instituto Sou da Paz já vinha alertando para o aumento de registros de armas. De 2014 a 2017, o avanço foi de 18%, e já vemos o seu impacto: entre 2012 e 2017, as mortes de mulheres aumentaram 8%, mas o número de assassinad­as dentro de casa e com armas de fogo cresceu 26%, segundo o Atlas da Violência.

Apesar do aumento da venda de armas sob a regra vigente até 2018 e da rejeição de 74% da população ao porte, em 2019 o governo Jair Bolsonaro flexibiliz­ou este acesso.

Os argumentos para tal, de que a arma em casa não traria perigo e permitiria a defesa das “famílias e propriedad­es”, demonstram ignorância sobre a dinâmica de violência contra as mulheres.

Esse tipo de violência tem origem em uma relação tóxica de controle exacerbado da vida da mulher, seja ela psicológic­a, patrimonia­l, moral e sexual. Nesse momento crítico, a mulher encontra-se tão fragilizad­a que “suporta” a violência e se vê impossibil­itada de sair sozinha de um ciclo nefasto. E a instância última desse ciclo é o feminicídi­o. É o poder de vida e morte sobre a mulher. Uma arma em casa, longe de ser um objeto de defesa, torna-se um algoz perverso que agrava e acelera o epílogo dessa história.

O Instituto Sou da Paz auxiliou a tramitação de um projeto de lei que obriga a suspensão do registro de armas de agressores de mulheres. Abraçada pela bancada feminina do Congresso, a proposta foi aprovada e, em agosto deste ano, tornou-se a lei 13.880/2019, que complement­a a Lei Maria da Penha. A nova lei é um importante avanço, mas é preciso que a atenção ao impacto da política de descontrol­e de armas sobre as mulheres seja ampliada, já que muitos dos casos de violência não chegam a ser denunciado­s.

É preciso ainda destinar atenção, sensível e apurada, para outro aspecto do feminicídi­o, que passa totalmente desaperceb­ido. A pesquisa de Condições Socioeconô­micas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, realizada pela Universida­de Federal do Ceará em parceria com o Instituto Maria da Penha em 2016, revelou a taxa de mais de dois órfãos por feminicídi­o, crianças ou adolescent­es que muitas vezes presenciar­am suas mães serem assassinad­as por seus pais.

Esse é um tema de extrema relevância; no entanto, as “vítimas invisíveis da violência” não recebem atenção do Estado. Tal estatístic­a se confirma na história da própria Maria da Penha, vítima de arma de fogo de seu então marido, que atirou em suas costas enquanto dormia e que a deixou paraplégic­a. Se Maria da Penha não tivesse sobrevivid­o, teria deixado três filhas na orfandade.

As histórias de Alessandra­s, Marianas, Silvanas e Marias se repetem nos rincões do país e deixam clara a necessidad­e de políticas públicas e leis que acolham, amparem e protejam as mulheres —e não que as submetam e ampliem a sua vulnerabil­idade.

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Marcelo Cipis

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