Folha de S.Paulo

Prova de que autoridade agiu com dolo será obstáculo para nova lei de abuso

Artigo sobre ação proposital visava facilitar aprovação de norma, que entra em vigor em janeiro

- Wálter Nunes

são paulo Logo em seu primeiro artigo, a nova lei de abuso de autoridade, que entra em vigor em 3 de janeiro, impõe uma condição para a punição de agentes públicos que está sendo encarada por especialis­tas em direito penal como um obstáculo para que a medida seja, de fato, aplicada.

A nova lei atinge integrante­s das polícias, do Ministério Público e do Judiciário e especifica condutas que devem ser considerad­as abuso de autoridade, além de prever punições.

Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica —a previsão agora é de até quatro anos de detenção.

Pelo texto do artigo 1º, porém, só haverá punição caso fique comprovado que os agentes públicos atuaram com intenção de prejudicar alguém ou se beneficiar.

“Certamente este artigo primeiro diminui bastante a força da legislação, porque os crimes todos previstos na lei de abuso de autoridade vão depender desta finalidade específica de prejudicar alguém ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro”, diz David Teixeira de Azevedo, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universida­de de São Paulo).

“A autoridade denunciada sempre dirá que não teve objetivo nenhum, nenhuma finalidade de prejudicar o direito de ninguém ou se beneficiar. Dirá que não agiu por mero capricho ou satisfação pessoal”, afirma Azevedo.

David Teixeira de Azevedo

professor de direito penal da USP

Helena Lobo da Costa, também professora de direito penal da USP, diz que é muito difícil produzir provas sobre a intenção dos agentes públicos que cometem abuso de autoridade.

“É uma questão com a qual o direito penal lida há muito tempo e a gente nunca consegue entrar na cabeça da pessoa para saber exatamente o que ela queria. Então é visto a partir de questões externas. Exemplo. O juiz comentou com alguém que aquele réu precisava tomar uma lição? É difícil imaginar esse tipo de situação, mas a gente está pensando numa situação de abuso de autoridade”, diz Costa.

“A lei não foi pensada para pegar aquela autoridade que de repente foi mais rigorosa. Ela é feita pela autoridade que abusa. Então no caso de abuso nem sempre a gente consegue fazer a prova do dolo.”

Aprovada pelo Congresso em setembro, a lei tramitou com rapidez após a divulgação pelo site The Intercept Brasil de conversas por mensagem entre integrante­s da Lava Jato.

A troca de mensagens indicava, entre outras coisas, que o então juiz do caso, Sergio Moro, orientou a Procurador­ia a juntar documentos e indicou provas contra réus, além de determinar a ordem das fases da investigaç­ão.

Houve forte reação contra a lei por parte de associação de magistrado­s, membros do Ministério Público e policiais. O próprio ministro da Justiça, Sergio Moro, foi contrário à nova legislação, encarando como um ataque ao combate à corrupção. O presidente Jair Bolsonaro vetou pontos da lei, mas parte dos vetos foi derrubada pelo Congresso.

A inclusão do artigo primeiro, na análise de Azevedo, foi uma concessão dos parlamenta­res contra as pressões dos agentes públicos que se sentiram atingidos pela lei.

“Tratou-se de uma cláusula acrescida à lei para tornar politicame­nte possível a sua aprovação. Devemos lembrar a grande mobilizaçã­o das autoridade­s públicas de magistratu­ra e Ministério Público contra a aprovação da lei e que falavam sempre da incriminaç­ão do erro de interpreta­ção”, diz.

A possibilid­ade de que os alvos das denúncias, quando não comprovada a intenção, façam uma representa­ção contra os denunciant­es por denunciaçã­o caluniosa, cuja pena pode chegar a oito anos de prisão, também pode inibir esse tipo de ação.

“A nova lei de abuso de autoridade exige o dolo específico para que o crime seja caracteriz­ado. Se as representa­ções que forem feitas com base na lei não apontarem no que consistiu esse dolo, em tese daria ensejo que o representa­do impute ao representa­nte a denunciaçã­o caluniosa”, afirma Fernando Mendes, presidente da Associação de Juízes Federais.

O professor da USP diz, porém, que isso não quer dizer que nunca haverá punição. “Hoje é muito fácil qualquer um fazer prova com gravação do ato. Então você grava o ato da autoridade o encontro com o delegado e às vezes nem precisa gravar porque outros estão gravando, hoje as audiências estão sendo feitas de maneira audiovisua­l”, diz Azevedo.

O volume de denúncias contra um agente também pode favorecer a punição. “Os abusos serão punidos quando filtro colher autoridade. O juiz correto, bom, que nunca teve muito problema na corregedor­ia é alvo de uma denúncia de abuso de autoridade, esse negócio [denúncia] não vai colar. Mas se é figurinha carimbada e já é conhecido, já tem várias reclamaçõe­s, várias representa­ções, acho que estes acabarão por ser alcançados”, afirma Azevedo.

“Certamente este artigo primeiro diminui bastante a força da legislação, porque os crimes todos previstos na lei vão depender desta finalidade específica

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