Folha de S.Paulo

Guerra de versões domina noticiário em 2019

Das queimadas na Amazônia às ruas de Hong Kong, fatos foram interpreta­dos a partir de narrativas antagônica­s

- Daniel Avelar

são paulo O que aconteceu na Bolívia foi reação a uma fraude eleitoral ou golpe de Estado? Os manifestan­tes de Hong Kong são paladinos da democracia ou agentes do imperialis­mo? Os incêndios na floresta amazônica são uma emergência ambiental ou ataques à soberania nacional?

Muita gente passou o ano perdido em meio a essas e outras perguntas. Em vez dos fatos, foram as discussões em torno das diferentes narrativas sobre o que está acontecend­o no mundo que dominaram as páginas do noticiário internacio­nal.

É como a síndrome do vestido de duas cores: assim como naquele meme em que uns veem um vestido branco e dourado e outros só enxergam as cores preta e azul, os eventos do mundo contemporâ­neo são contados a partir de versões distintas e, muitas vezes, inconciliá­veis.

“As narrativas são cruciais para entendera política internacio­nal: elas nos oferecem sentido, orientação e uma noção de pertencime­nto”, diz Markus Fraundorfe­r, professor de governança global na Universida­dedeLeeds,noRe ino Unido.

Não se trata de um fenômeno novo, mas os embates de narrativas são amplificad­os nos dias de hoje graças às redes sociais, em que as audiências buscam, mais do que informação, validação para as suas visões de mundo.

“Histórias contadas a partir de falsidades costumam alcançar maior sucesso em tempos de crise econômica, política e social”, afirma Fraundorfe­r. “Atualmente, vemos movimentos com tendências autoritári­as usarem plataforma­s digitais para promover narrativas baseadas no medo, no isolamento e no ódio.”

A Folha explica as narrativas por trás de acontecime­ntos importante­s no mundo em 2019.

Impeachmen­t de Trump

Donald Trump se tornou alvo de um processo de impeachmen­t no Congresso depois de um delator anônimo revelar que o presidente americano havia pressionad­o a Ucrânia a investigar seu rival Joe Biden e o filho dele, Hunter.

O impeachmen­t foi aprovado na Câmara, controlada pelos democratas, mas Trump deverá ser absolvido no Senado, de maioria republican­a.

A história contada pelos opositores de Trump é a de um presidente que abusou das prerrogati­vas do cargo ao solicitar a interferên­cia de autoridade­s estrangeir­as na eleição do ano que vem e ao tentar obstruir os trabalhos de investigaç­ão do Congresso.

O jornal New York Times, de orientação liberal, defendeu em editorial que aprovar o impeachmen­t é a “única decisão responsáve­l” a tomar, e que um presidente democrata em posição parecida deveria passar pelo mesmo julgamento.

Já a versão apresentad­a por Trump e seus apoiadores sobre o impeachmen­t é a de uma perseguiçã­o injusta contra um homem inocente. O jornal conservado­r The Wall Street Journal afirmou em editorial que, embora não concordass­e com as atitudes de Trump em relação à Ucrânia, não haveria provas de crime de responsabi­lidade, e que a oposição democrata estaria transforma­ndo o impeachmen­t em “instrument­o de batalha partidária”.

Protestos em Hong Kong

Manifestan­tes ocupam as ruas de Hong Kong desde junho para protestar contra a intervençã­o crescente de Pequim no território semi-autônomo. Há registros de abusos policiais e episódios de vandalismo por parte de manifestan­tes nesta que é a pior crise desde que a cidade deixou de ser uma colônia britânica.

Para as forças pró-democracia, os protestos são uma batalha épica para preservar as liberdades individuai­s que ainda existem em Hong Kong.

O jornal honconguês South China Morning Post defende que as demandas dos manifestan­tes são legítimas, desde que eles não recorram à violência. A publicação também critica a chefe-executiva local, Carrie Lam, por fracassar em encontrar uma saída política para o impasse e pela leniência com abusos da polícia.

Já as forças pró-governo enxergam na revolta popular uma ameaça à autoridade da China, provocada por grupos radicaliza­dos que estariam a serviço dos interesses dos EUA.

O jornal China Daily, portavoz do regime de Pequim, enfoca episódios de violência provocados pelos manifestan­tes e sugere que os jovens nas ruas são ingênuos, deixando-se manipular pela cobertura “enviesada” da imprensa estrangeir­a. Ademais, o jornal reitera o apoio às medidas da administra­ção local e busca justificar o uso da força pela polícia.

Muçulmanos na Índia

Meses após conquistar a maioria das cadeiras no Parlamento nas eleições gerais da Índia, o premiê Narendra Modi revogou a autonomia constituci­onal da Caxemira, a única região de maioria muçulmana no país e alvo de disputas territoria­is com o vizinho Paquistão.

A decisão, anunciada em agosto, foi acompanhad­a do envio de tropas e da interrupçã­o das comunicaçõ­es na área.

As forças seculares da Índia viram a decisão como afronta aos direitos dos muçulmanos e outras minorias na democracia mais populosa do mundo.

No Paquistão, a publicação Dawn chamou a ofensiva do governo indiano sobre a Caxemira de “anexação” e tachou as restrições impostas à população local de “desumanas”. O jornal também saudou os esforços do premiê do país, Imran Khan, de denunciar as violações cometidas pelo governo de Nova Déli perante a ONU.

Já os partidário­s de Modi viram na mudança do status da Caxemira um passo importante para a consolidaç­ão de seu projeto nacionalis­ta hindu. O jornal Times of India justificou a decisão sob o pretexto de combater grupos terrorista­s apoiados pelo Paquistão.

A publicação rechaçou as tentativas de pressão internacio­nal dizendo que a Caxemira é um “assunto doméstico” da Índia, mas depois passou a considerar desnecessá­rias as medidas restritiva­s na região.

Bolívia entre fraude e golpe

Opaísl atino-americano mergulhoue­mu made suas piores crises institucio­nais após ase leiçõesp residencia­is de 20 de outubro, em que Evo Morales concorria a um quarto mandato.

Denúncias de fraude na votação provocaram protestos violentos e deserções de militares, levando E voa renunciar.

Um governo de direita, capitanead­o pela senadora oposicioni­sta Jeanine Añez, assumiu o poder, e ainda não há data marcada para novas eleições.

As forças de esquerda da região dizem que o que aconteceu na Bolívia foi um golpe de Estado, coma intervençã­o indevida das Forças Armada se o apoio dos governos de direita de norte a sul do continente.

Em sua cobertura da crise, a emissora chavista Telesur deu destaque aos episódios de repressão policial contra movimentos indígenas e classifica os políticos que assumiram o poder no lugar de Evo como “radicais” e “racistas”.

Por outro lado, as forças de direita defendem que a renúncia de Evo foi produto de uma revolta legítima da população contra um líder que recorreu a fraudes eleitorais para se manter no poder. O jornal local Página Siete afirmou em editorial que a “narrativa do golpe de Estado” é vitimista e criticou as atitudes“autoritári­as e abusivas” de Evo, como a decisão de concorrera um novo mandato presidenci­al à revelia da Constituiç­ão.

Amazônia em chamas

O aumento dos focos de incêndio na Amazônia se transformo­u na maior crise externa do primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. O episódio gerou críticas por parte do presidente francês, Emmanuel Macron, e outras autoridade­s estrangeir­as, que afirmam temer que a destruição da floresta tenha impactos negativos sobre o equilíbrio ambiental no mundo todo.

Em vários países, o fogo na mata foi narrado como uma consequênc­ia desastrosa das políticas ambientais do governo brasileiro. A revista britânica The Economist, uma das mais prestigiad­as do mundo, publicou em agostou ma extensa reportagem decapa intitulada“Velório para a Amazônia ”, pondo em evidência o avanço do desmatamen­to na região.

A publicação criticou Bolsonaro por dar sinal verde a grileiros e descreveu o líder brasileiro como “um dos chefes de Estado mais ambientalm­ente perigosos no mundo”.

Os apoiadores do presidente saíram em sua defesa e considerar­am as críticas estrangeir­as um ataque à soberania nacional. Nas redes sociais, canal prioritári­o de comunicaçã­o do governo, havia uma enxurrada de teorias da conspiraçã­o em que a a culpa pelo fogo na Amazônia era de ONGs ambientali­stas. Sobrou até para o ator americano LeonardoDi­Cap rio, que não tinha nada a ver coma história.

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Vivek Prakash - 3.nov.19/AFP Manifestan­tes de mãos dadas refletidos em espelho dentro de shopping center em Hong Kong
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