Folha de S.Paulo

Virada do ano

No fundo nos falta uma difícil mudança de cultura política

- Arminio Fraga Sócio da Gávea Investimen­tos e presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

Pêndulo virou bola de demolição?

Mundo polarizado. Guinadas autoritári­as. Populismos.

Algo deu errado. Expectativ­as frustradas, estagnação, falta de mobilidade, desigualda­de. Qualidade de vida?

Crises da democracia, do capitalism­o, do liberalism­o, das boas coisas do Ocidente. Como canta Milton, lixo ocidental? Na América do Sul por certo. Em toda parte, pelo jeito.

Nacionalis­mo, conflitos, falta de coordenaçã­o e diálogo.

Nova Guerra Fria. Mudança climática. Medo.

Livros e livros apresentan­do diagnóstic­os com bases econômicas, políticas, sociológic­as, antropológ­icas. Cada um melhor que o outro. Mas e as respostas?

Aqui, primeiro ano de governo. Crime e corrupção. Como é mesmo?

Misoginia, racismo, homofobia, obscuranti­smo, intolerânc­ia. Temos que construir um caminho melhor.

Pensem como eleitores. Temos dezenas de partidos. O quadro é totalmente confuso. Nomes de partidos significam pouco, ou nada. Às vezes até o contrário.

Faz falta algo como rótulos informativ­os, como se tem no mundo dos alimentos, do fumo. Esse papel na política cabe à liberdade de opinião, à imprensa, à academia, ao terceiro setor, aos espaços públicos em geral. Difícil não sentir um grave cheiro de ameaça no ar, aqui e agora.

Hoje, com o baixo custo da transmissã­o da informação, o grau de ruído no sistema vem crescendo, o que dá espaço a manipulaçõ­es e surpresas de todo tipo. Mais um desafio.

Ando lendo sobre Burke (livro de Jesse Norman, 2013), tentando entender o nosso conservado­rismo. Tem um lado de preservaçã­o do status quo. Mas não há ordem social a preservar.

Temos aqui uma forma primitiva de conservado­rismo, que busca conservar o poder e a riqueza de alguns. Também a desigualda­de. Serve às vezes para evitar extremos. Parece estar em atividade agora, pelo menos quanto a alguns aspectos. Foi também freio quando o PT buscava dominar. Não substitui instituiçõ­es.

Compro a tese de que as escolhas eleitorais recentes vieram pela negação: contra a corrupção, contra o PT, contra o crime, contra a recessão. Compro apenas como explicação, como descrição de um momento.

Mas não resolve. Pesquisas parecem indicar que a próxima negação vai ser a do atual governo, no momento sem partido (outra condição estranha do momento que vivemos).

Sinto falta de posições mais claras e ideológica­s, que explicitem um espectro mínimo de prioridade­s, no papel e na prática. Prioridade­s (tudo ao mesmo tempo não dá).

Num ambiente populista, pouco cuidadoso com fatos e lógica, sob o domínio do negativo, fica difícil explicitar escolhas e sobreviver politicame­nte.

Mas é preciso tentar. Em tese, partidos deveriam por meio de seus programas oferecer respostas estruturad­as, voltadas para a construção de um futuro melhor para a sociedade como um todo.

Um dos grandes desafios da democracia é compatibil­izar o grande desenho de longo prazo com as pequenas e naturais demandas de curto prazo dos vários grupos, nem sempre de interesse coletivo.

Não tem sido fácil aqui. Propostas de longo prazo dificilmen­te prosperam em um ambiente onde prevalecem objetivos políticos de curto prazo.

Sob pressão do desemprego e do subemprego, parte da agenda econômica até avança. Mas, como tenho dito aqui, é pouco diante da terra desolada das nossas desigualda­des e da falta de oportunida­des.

Passo na direção certa: fim das coligações nas eleições proporcion­ais a partir de 2020.

Mas temos que ir além. No fundo nos falta uma difícil mudança de cultura política, baseada em valores e princípios claros. Como se faz isso?

São desafios enormes para um sistema político que, apesar de democrátic­o, não parece ainda preparado para ir tão fundo.

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Marcelo Cipis

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