Folha de S.Paulo

Damares privilegia evangélico­s em agenda oficial de ministério

Titular dos Direitos Humanos fecha as portas a grupos antitortur­a e outros

- Angela Boldrini e Danielle Brant

brasília “O estado é laico, mas esta ministra é terrivelme­nte cristã”, disse Damares Alves ao assumir o comando do então recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em 2 de janeiro.

Ao final de um ano, levantamen­to feito pela Folha mostra que a agenda da ministra confirma a afirmação feita durante a posse: dos congressis­tas recebidos por Damares entre sua posse e o fim de novembro, 74 fazem parte da bancada evangélica do Congresso, contra 42 não evangélico­s.

Além disso, Damares manteve agenda regular com grupos ligados à pauta religiosa, como pastores e entidades de missionári­os.

No Congresso, a bancada evangélica tem 203 congressis­tas, sendo 34% do total de cadeiras. Ainda assim, respondera­m por 63% dos parlamenta­res recebidos pela ministra.

Só o presidente da frente parlamenta­r evangélica, Silas Câmara (PRB-AM), da Assembleia de Deus manauara, passou três vezes pelo gabinete da ministra. Situação oposta à dos membros da mesa diretora da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que não constam dos compromiss­os oficiais da ministra.

“Não é questão de preferênci­a, é uma ligação de pauta, eu cuido muito da questão da família”, diz Liziane Bayer (PSB-RS).

A deputada é evangélica e faz parte da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Ela também relata parte do texto da subcomissã­o sobre adoção, pedofilia e família criada neste ano.

O tema é relatado por duas deputadas da frente, Liziane e

Flordelis (PSD-RJ), e uma terceira, Paula Belmonte (Cidadania-DF), que não faz parte da bancada evangélica, mas também tem viés conservado­r —é membro, por exemplo, da Frente Contra o Aborto e em Defesa da Vida.

Liziane foi recebida quatro vezes pela ministra ao longo do ano. É o segundo maior número de reuniões, superado apenas por Filipe Barros (PSLPR), um dos deputados bolsonaris­tas do ex-partido do presidente Jair Bolsonaro.

Flordelis, deputada considerad­a promissora na bancada evangélica, mas que se vê no meio de investigaç­ões envolvendo o assassinat­o do marido, o pastor Anderson do Carmo, foi ao ministério duas vezes, em fevereiro e abril.

Nas redes sociais, a congressis­ta fluminense publicou vídeos com Damares convocando para a “Cruzada pela Adoção”, seminário na Câmara.

Na agenda oficial de Damares, aparecem encontros indicados apenas como “almoço com lideranças evangélica­s”, em agosto, “líderes religiosos” em abril ou “lideranças evangélica­s e cantores gospel”, em 14 de outubro.

Outras associaçõe­s religiosas também foram recebidas, como a presidente da AEPBPC (Associação de Esposas de Pastores Batistas do Planalto Central), Emanuele Costa.

Em alguns dias, a agenda da ministra não identifica a posição de pessoas recebidas por ela. Em 26 de abril, por exemplo, a pasta lista a visita de um “sr. Renan”, sem nenhum outro elemento para que se possa saber quem a ministra estava recebendo em agenda oficial.

Centro de duas das principais polêmicas do ano, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescent­e) e o MPCT (Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura) não aparecem na lista de entidades recebidas.

Esta contém principalm­ente representa­ções internacio­nais, como a ONU Mulheres, em janeiro, reuniões com membros do Acnur (refugiados) e com a alta-comissária para Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, durante visita a Genebra, em fevereiro, e a chefe da delegação internacio­nal da Cruz Vermelha em setembro.

Gustavo Magnata, perito do Mecanismo de Combate à Tortura, disse que o grupo tentou diversas vezes se aproximar da ministra, sem sucesso.

A assessoria do ministério afirmou à Folha que a agenda depende de “disponibil­idade de ambas as partes” e que a ministra “já se encontrou em outras oportunida­des com mais de um membro do grupo”.

Segundo Magnata, a resposta não correspond­e ao que ocorreu. “O mecanismo requereu agenda com ela, mas não fomos recebidos. Eu participei de audiência pública na Câmara com ela, onde ela garantia que não atacaria o mecanismo e logo em seguida fomos exonerados”, afirma ele.

O mecanismo se envolveu em disputa judicial com o governo depois de, em junho, Bolsonaro publicar a extinção dos cargos dos membros do grupo, responsáve­l pela fiscalizaç­ão e relatórios sobre tortura no país, tornando seus membros apenas voluntário­s.

Depois, o ministério de Damares retirou recursos e cortou o apoio administra­tivo e o acesso dos peritos ao prédio da pasta.

O caso foi revertido em agosto, quando a 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro suspendeu o decreto de Bolsonaro e reintegrou os peritos.

Do mesmo modo, o Conanda consta apenas uma vez da agenda da ministra, durante a posse dos conselheir­os em fevereiro.

Depois disso, Damares desidratou a atuação do órgão. Em maio, por exemplo, suspendeu o pagamento de passagens aéreas e hospedagem para os conselheir­os da sociedade civil, que não recebem pelo trabalho, para que estes pudessem comparecer às reuniões.

A Conferênci­a Nacional da Criança e do Adolescent­e, prevista para ocorrer a cada três anos e marcada para outubro último, também foi cancelada por falta de contrataçã­o de empresas pelo ministério em tempo hábil.

Segundo o ministério, o número maior de evangélico­s é natural porque haveria uma demanda maior de pedidos destes grupos.

Não é só no Brasil que a ministra prioriza grupos conservado­res em sua agenda. Em viagens ao exterior, Damares manteve audiência com parlamenta­res ligados a movimentos contrários ao aborto, como em Buenos Aires.

Em maio, Damares se reuniu com congressis­tas do partido Celeste Provida, antiaborto, fez um discurso pró-vida no Parlamento e se encontrou com ministros da província de Buenos Aires defensores da temática.

Em Miami, dois meses depois, esteve no South Florida Bible College, que defende uma educação cristã.

Esteve ainda na Heritage Foundation, que se define como o grupo conservado­r mais influente nos Estados Unidos, e em dois centros com caracterís­ticas semelhante­s, a American Conservati­ve Union e a Alliance Defending Freedom, que reúne líderes cristãos.

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Zanone Fraissat - 11.nov.19/Folhapress Damares Alves inaugura Casa da Mulher Brasileira em São Paulo

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