Folha de S.Paulo

Carta de amor para o Ano Novo

Crianças, vocês fazem parte de uma família de 8 bilhões de pessoas

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral” | dom. Marcelo Leite, Reinaldo José Lopes

Meus filhotes,

Observar as carinhas de vocês de longe, quando estão brincando, ou de perto, quando estão dormindo, é algo que me dá um prazer difícil de explicar. Reservo alguns segundos para fazer isso depois que coloco vocês na cama, já de olhos fechados, após fazer o sinal da cruz na testa dos dois, conforme me ensinaram.

Suspeito que parte desse prazer venha do reconhecim­ento de que, como membros de uma família, somos variações do mesmo tema na partitura das gerações. O mais velho tem o rosto redondo da bisa que já se foi; a caçulinha exibe os olhos levemente puxados da tia que também é a caçula no seu galho da árvore genealógic­a.

Sinto mais ou menos a mesma coisa quando vejo os rostos de outras famílias, em outros lugares. E aqui vem o grande segredo, o pulo-dogato: as barreiras que separam uma família da outra quando caminhamos pela praia ou pelo shopping são mais fumaça do que rocha.

São ilusórias — tendem a existir apenas na nossa cabeça.

Em “As Crônicas de Nárnia”, que eu espero que vocês leiam o quanto antes, C.S. Lewis diz que somos todos filhos de Adão e filhas de Eva. É um jeito bonito e antigo de reconhecer aquilo que os autores do livro do Gênesis já sabiam: existe uma unidade profunda entre os membros da espécie de bichinho à qual pertencemo­s, chamada de Homo sapiens pelos cientistas.

Com efeito, todas as pessoas vivas hoje são tataraneta­s de um grupo minúsculo — algumas dezenas de milhares de sujeitos, do tamanho de uma cidadezinh­a de hoje — que começou a sair da África entre 150 mil e 100 mil anos atrás, pelo que a gente sabe.

Se parece muito tempo — afinal, a gente só aprendeu a escrever e construir cidades uns 6.000 anos atrás—, é bom lembrar que se trata de mero cisco perto dos 4,5 bilhões de anos de existência da Terra.

Esse punhadinho de gente foi se espalhando aos poucos pelos continente­s, às vezes tendo filhos com outras espécies de seres humanos, ligeiramen­te diferentes de nós, que já estavam por lá. Mesmo depois do que, do nosso ponto de vista, parece muito tempo, o resultado é que somos todos ridiculame­nte parecidos uns com os outros.

Um dos jeitos de medir isso é analisar o DNA, uma enciclopéd­ia minúscula que contém as instruções necessária­s para construir nosso corpo e está guardada no núcleo das nossas células. A diferença média entre o DNA de quaisquer pares de pessoas — um chinês e um finlandês, um havaiano e um zulu — é de 0,5%. Os outros 99,5% são iguaizinho­s.

Essa, porém, é só parte do segredo. Nosso DNA também tem semelhança de mais de 95% com o de todos os grandes símios —chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotang­os. Conforme os outros bichos e seres vivos vão ficando menos parecidos com a gente, os números vão diminuindo devagar, mas a semelhança é sempre significat­iva. Isso quer dizer que a mesma coisa que vale para todos os seres humanos vale, em outra escala, para tudo o que é vivo: somos membros de uma única família.

Sim, famílias brigam — às vezes feio (como a gente sabe muito bem aqui casa). Famílias se machucam, têm interesses diferentes competindo dentro delas, às vezes se desmancham. Mas não se esqueçam nunca de que as coisas maravilhos­as que acontecem dentro da cabeça de vocês também estão na cabeça de outras pessoas —até nas piores. E esse é um pensamento encorajado­r, como dizia o velho Gandalf. Feliz Ano Novo pra todos nós, Papai.

 ?? National Institute of Anthropolo­gy and History/Reuters ?? ARQUEÓLOGO­S DESCOBREM PALÁCIO MAIA NO MÉXICO
Construção era usada pela elite há mais de mil anos na antiga cidade de Kulubá, perto da atual Cancún; civilizaçã­o maia teve seu pico entre 250 e 900 a.C.
National Institute of Anthropolo­gy and History/Reuters ARQUEÓLOGO­S DESCOBREM PALÁCIO MAIA NO MÉXICO Construção era usada pela elite há mais de mil anos na antiga cidade de Kulubá, perto da atual Cancún; civilizaçã­o maia teve seu pico entre 250 e 900 a.C.

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