Folha de S.Paulo

Odiar como Jesus odiou

Pai nosso que estais no céu vendo Netflix

- Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’ Ricardo Araújo Pereira

Havia aquela música, cantada por um padre: “Um dia uma criança me parou, olhou-me nos meus olhos a sorrir, caneta e papel na sua mão, tarefa escolar para cumprir. E perguntou no meio de um sorriso o que é preciso para ser feliz”. A canção é perturbado­ra por várias razões.

Primeiro, a criança é muito corajosa. Aborda um padre e olha-o nos olhos a sorrir. É brincar com o fogo. Segundo, a incumbênci­a de tentar descobrir o que é preciso para ser feliz parece uma tarefa escolar determinad­a por um professor deprimido.

Terceiro, mesmo tratando-se de uma criança, é inverossím­il que alguém procure apurar o segredo da felicidade junto de um celibatári­o. Quarto, a resposta do padre sobre o exemplo de Jesus deve surpreende­r boa parte dos seguidores de Jesus.

Não inclui os conselhos “assinar petições a exigir a retirada de programas como Jesus assinou”, ou “lançar coquetéis molotov como Jesus lançou”.

Tenho constatado, aliás, que os mais fervorosos defensores de Jesus, ao que parece, não conhecem Jesus. Às vezes, a ignorância é uma condição necessária para o amor. Essa é, precisamen­te, a razão da minha baixa autoestima: quanto mais me conheço, menos me amo.

Mas Jesus é, ao que me dizem, ligeiramen­te mais admirável do que eu, e por isso os que dizem amá-lo ganhariam em conhecê-lo.

No entanto, não parecem ter esse interesse. Por exemplo, é frequente ouvirmos cristãos a dizer que não se pode ofender a fé dos outros. O papa disse exatamente isso na sequência dos atentados ao Charlie Hebdo.

No Brasil, acredita-se que quem ofende a fé dos outros deve ser convocado a uma CPI. Curiosamen­te, porém, Jesus ofendia a fé dos outros. Em várias ocasiões, os fariseus ficaram mesmo muito ofendidos com ele —tanto que o convocaram para uma espécie de CPI. E creio que todos sabemos como esse processo acabou.

Alguns cristãos, no entanto, seguem outro catecismo —e suponho que rezem de outra maneira. “Pai nosso que estais no céu vendo Netflix, perdoai as nossas ofensas assim como nós não perdoamos a quem nos tem ofendido, e tanto assim é que desejamos puni-los, seja pela via judicial, seja por meio de ataques terrorista­s. Amém.”

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Luiza Pannunzio

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