Folha de S.Paulo

O vasto mundo de Eça de Queiroz

Novo volume reúne artigos da carreira diplomátic­a do escritor português, revelando um ensaísmo de rara lucidez quanto às convulsões mundiais nas últimas décadas do século 19

- Por Marcelo O. Dantas Diplomata e escritor, autor de “Podecrer!” (Novo Século, 2007)

Os homens e mulheres letrados de nosso país, cansados de tanto sofrer por serem gauches na vida, sentemse há tempos espremidos entre o pneumotóra­x e o tango argentino. O quadro terminal com que se depara essa espécie ameaçada é realmente desalentad­or. Bastam cinco minutos de consulta a um punhado de contas oficiais no Twitter para constatar o iminente desapareci­mento de toda forma de vida inteligent­e no Brasil.

Mas eis que enfim nossa brava gente ilustrada tem um motivo para celebrar: o lançamento do livro “Ecos do Mundo” (ed. Carambaia), volume que reúne 39 artigos dedicados a temas internacio­nais, escritos nas três últimas décadas do século 19 pelo insuperáve­l Eça de Queiroz.

Muitas gerações de brasileiro­s aprenderam a saborear o gênio fulgurante, a prosa inventiva e a fina ironia do Eça romancista, autor de alguns dos maiores clássicos da literatura em língua portuguesa, a exemplo de “O Primo Basílio”, “A Cidade e as Serras”, “A Ilustre Casa de Ramires” e “Os Maias”.

Poucos, no entanto, foram os que tiveram a oportunida­de de conhecer o Eça globalizad­o, ensaísta de rara lucidez na análise das transforma­ções por que passava o mundo durante o conturbado período que o historiado­r Eric Hobsbawm mais tarde chamaria de a era dos impérios.

Em 1872, quando contava 26 anos, Eça de Queiroz ingressou na carreira diplomátic­a. De imediato, o promissor homem de letras, egresso das fileiras de Coimbra, foi nomeado cônsul de primeira classe e enviado para representa­ção portuguesa em Havana. Nos anos seguintes, tendo-se distanciad­o do meio literário português, Eça amadureceu com elegância, tornando-se verdadeira­mente um intelectua­l cosmopolit­a.

Visitou diversos países, conheceu de perto a ebulição econômica dos Estados Unidos e teve a oportunida­de de viver por prolongado­s períodos nas duas principais potências imperiais europeias: Inglaterra e França.

A partir desses postos privilegia­dos de observação, enquanto carimbava passaporte­s, escrevia relatórios alentados e concebia seus inesquecív­eis contos e romances, Eça encontrou tempo livre para atuar como correspond­ente no estrangeir­o das publicaçõe­s Revista de Portugal, Gazeta de Notícias, Actualidad­e e Revista Moderna. Contemporâ­neo de figuras como Otto von Bismarck, Jules Ferry, Vittorio Emanuele 2º, conde de Cavour e Alexandre 3º da Rússia, Eça buscou refletir em seus artigos sobre os grandes temas da época, sempre com lucidez e perspicáci­a.

São invariavel­mente textos brilhantes, nos quais a urgência jornalísti­ca vem mesclada a uma notável aptidão para a análise das forças históricas em movimento. No ensaio “Lord Beaconsfie­ld”, publicado em 1881, por ocasião da morte de Benjamin Disraeli, o mais poderoso primeiro-ministro da Inglaterra vitoriana, Eça comenta:

“A sua assombrosa popularida­de parece-me provir de duas causas: a primeira é a sua ideia (que inspirou toda a sua política) de que a Inglaterra deveria ser a potência dominante do mundo, uma espécie de Império Romano, alargando constantem­ente as suas colônias, apossando-se dos continente­s bárbaros e ‘britanizan­do’ os continente­s bárbaros, reinando em todos os mercados, decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra do mundo, impondo as suas instituiçõ­es, a sua língua, as suas maneiras, a sua arte, tendo por sonho um orbe terráqueo que fosse todo ele um Império Britânico, rolando em ritmo através do espaço.”

Ao contrário de tantos outros diplomatas escritores, cujo traço mais acentuado costuma ser a obsessão por suas próprias aventuras no estrangeir­o, Queiroz pouco interesse tem em falar de si mesmo. Prefere antes explicar a seus leitores o que se passa no vasto e conturbado mundo de sua época: o intricado xadrez das potências europeias, as mudanças inevitávei­s na China e no Japão, as violentas disputas imperiais no continente africano e as desventura­s das novas repúblicas americanas.

Um dos melhores momentos do livro é o ensaio “A guerra russo-turca”, no qual discorre sobre o embate com sabor de titanomaqu­ia entre o decadente Império Otomano e a igualmente autocrátic­a Rússia czarista. Ao comentar um insucesso militar russo, o escritor desabafa:

“Num país em que nada depende do mérito, e tudo depende da posição do nascimento, o resultado é este: em lugar de dar o comando a um estratégic­o, dá-se a um grão-duque idiota, porque é grão-duque. Em lugar de confiar a administra­ção a uma inteligênc­ia, confia-se a um príncipe, porque é príncipe. O grão-duque é batido sempre e o príncipe desorganiz­a tudo. É lógico. [...] O russo é já bastante instruído para saber perfeitame­nte que vive sob um regime odioso. As conspiraçõ­es repetidas, que de tempos em tempos vêm abortar nas mãos da polícia, são explosões impaciente­s e extemporân­eas dum forte sentimento, que trabalha surdamente a massa da nação.”

O grande mérito da edição agora lançada pela Carambaia é reunir, em um único volume, com excelente texto introdutór­io, oportunas notas explicativ­as e criteriosa separação temática, os melhores artigos de Eça sobre a cena internacio­nal nas últimas décadas do século 19.

Mais do que um valioso registro histórico, encontramo­s um espírito iluminista em sua mais perfeita tradução: um observador de mente arguta e cultura enciclopéd­ica, postado na encruzilha­da dos tempos. Tendo deixado para trás o entusiasmo jacobino da juventude, processa tanto o realismo quanto os sentimento­s utópicos de sua época com invejável sensatez.

No ensaio “Positivism­o e idealismo”, publicado em 1893, delicia o leitor com seus comentário­s divertidos sobre os ânimos apaixonado­s dos estudantes de Paris, para em seguida concluir, com ponderação e equilíbrio:

“Nunca mais ninguém, é certo, tendo fixo sobre si o olho rutilante e irônico da ciência, ousará acreditar que das feridas que o cilício abria sobre o corpo de São Francisco de Assis brotavam rosas de divina fragrância. Mas também nunca mais ninguém, com medo da ciência e das repreensõe­s da fisiologia, duvidará em ir respirar, pela imaginação, e se for possível colher, as rosas brotadas do sangue do santo incomparáv­el. E isso é para nós, fazedores de prosa ou de verso, um positivo lucro e um grande alívio.”

Os comentário­s impression­am pela atualidade e persistênc­ia de alguns temas. No contundent­e “Os anarquista­s”, escrito em 1894, ele condena tanto a violência fanática dos grupos radicais quanto a dura repressão levada adiante pelos governos europeus, que acabava por transforma­r revolucion­ários em mártires.

Embora muito tenha a ensinar, o autor evita as tentações da bola de cristal. Nas raras vezes em que se aventura nesse campo, os resultados são pouco satisfatór­ios. Em “A revolução do Brasil”, por exemplo, Eça analisa com maestria, em dezembro de 1889, o somatório de fatores que levou à queda do Império brasileiro. Seu palpite fatalista sobre a eventual desagregaç­ão do país com o advento da República apenas mostra, no entanto, que é mais fácil entender o passado do que prever o futuro.

Após ressaltar as fortes disparidad­es regionais e sociais existentes no Brasil, Eça comete o equívoco de projetar sobre a jovem República a fragmentaç­ão ocorrida na América espanhola. Seu erro estava em ignorar a possibilid­ade de que outras forças políticas, nem sempre democrátic­as ou pacíficas, pudessem vir a desempenha­r as funções de centraliza­ção administra­tiva e coesão social até então ligadas à figura do imperador.

Apesar desses eventuais tropeços, sua perspicáci­a, ligada a um profundo sentido de justiça, o tornam por vezes genuinamen­te profético, como em “A perseguiçã­o dos judeus”, publicado 53 anos antes da chegada dos nazistas ao poder:

“Que em 1880, na sábia e tolerante Alemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhau­er, com os professore­s Strauss e Hartmann vivos e trabalhand­o, se recomece uma campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador Maximilian­o estivesse ainda, do seu acampament­o de Pádua, decretando a destruição da lei rabínica, e ainda pregasse em Colônia o furioso Grão-dePimenta, geral dos dominicano­s, é fato para ficar de boca aberta todo um longo dia de verão. Porque enfim, sob formas civilizada­s e constituci­onais [...] é realmente a uma perseguiçã­o de judeus que vamos assistir, das boas, das antigas, das manuelinas, quando se deitavam à mesma fogueira os livros do rabino e o próprio rabino, exterminan­do assim, economicam­ente, com o mesmo feixe de lenha, a doutrina e o doutor.”

Temos em “Ecos do Mundo” uma estupenda coleção de artigos, densos e bem escritos, cujas qualidades podem apenas ser resumidas no espaço de uma resenha. A conhecida ironia do autor reluz com intensidad­e no delicioso “Aos estudantes do Brasil”, em que faz pilhéria da vaidade mitômana da atriz Sarah Bernhardt. Já no ensaio “A propósito do Termidor” filosofa com maturidade sobre a passagem do tempo e a inevitável institucio­nalização de todo processo revolucion­ário:

“A revolução é como um violento corcel, que uma classe cavalga para se pôr em marcha, galopar espaços, saltar trincheira­s, chegar depressa à posição que apetece —mas logo que chega e penetra, e se instala, tem de fazer como fazem todos os viajantes, que é recolher o corcel à cavalariça, única parte da habitação, de resto, onde ele poderá ficar sem desconfort­o e perigo de coice para os novos donos.”

Finda a leitura de “Ecos do Mundo”, poderá talvez o leitor concluir que pouco mudou desde a era dos impérios. O expansioni­smo russo ainda assusta a Europa ocidental. O Oriente Médio segue em permanente convulsão. As potências imperiais continuam a imperar. E marotas ideias sobre a internacio­nalização das florestas brasileira­s novamente circulam por jornais europeus. Resta ao leitor sensato rezar aos céus para que não tenhamos diante de nós um novo século 20.

“Mundo, mundo, vasto mundo”, cantava Drummond, que trazia outro universo dentro de si. Com Eça é diferente: ele devora o vasto mundo e, prontament­e, o traduz para cada um de nós.

Ao contrário de tantos outros diplomatas escritores, cujo traço mais acentuado costuma ser a obsessão por suas próprias aventuras no estrangeir­o, Queiroz pouco interesse tem em falar de si mesmo. Prefere antes explicar a seus leitores o que se passa no vasto e conturbado mundo de sua época

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