Folha de S.Paulo

O ano em que arrancaram nosso olho

Uma crônica do final do ano de crise de 1983, uma paisagem com ruínas e esperança

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

O ano de 1983 encerrou o pior triênio recessivo de que se tem registro no Brasil. Mas política econômica era assunto perdido no meio das páginas da Folha daquela época, entre Natal e Ano-Novo. O jornal fazia campanha pelas eleições diretas, assunto que dominava as manchetes, animadas com o possível fim da ditadura. Era uma paisagem com esperança e ruínas.

Na Primeira Página, a notícia mais impression­ante do final de 1983 parece agora a do

linchament­o do ex-presidiári­o Tiãozinho, 22, na tarde de Natal. Pouco antes de ser morto, havia assassinad­o um peixeiro que lhe negara um empréstimo de 3.000 cruzeiros (dinheiro que dava para comprar 12 exemplares da Folha).

Depois do linchament­o, “a favelada F.S.S. tentou extrair o olho esquerdo do egresso [ex-preso] com uma chave de fenda”. Tinha “bronca” do morto, que “aprontava” no bar do marido dela.

No mais, a crise social quase não aparecia ou era “fait divers”: “Desemprega­do oferece rim em troca de um trabalho”. “Diretas ou explosão social, alerta Ulisses”, o deputado federal Ulisses Guimarães (1916-1992), o “Senhor Diretas”, condestáve­l da Nova República. Não teve nem uma coisa nem outra.

Naquele ano, lembro-me dos acampados nas ruas, gente que passara a viver sob cabaninhas de plástico preto, ou dos muitos despejados por falta de pagamento de aluguel.

A gente via montes de crianças mortas de fome, pele e osso, na periferia ou nas favelas, que desde então sumiram dos

bairros centrais, incendiada­s. “Limpeza étnica” à brasileira.

A gente, garotos militantes de esquerda, também acreditava em revolta social. A renda média de então equivalia a 40% da renda atual. Não havia Bolsa Família, Previdênci­a era pouca, e a saúde pública era muito pior e não era universal (não tinha SUS). A polícia vigiava reunião de movimentos

sociais dentro de igreja e batia nos estudantes, bidu. Havia operários irados. Havia operários.

Ninguém acreditava que o país cresceria em 1984, afora Delfim Netto, ministro que mandava de fato na economia. Mas o PIB avançou 5,4% (3,3% por cabeça, o equivalent­e hoje a uns 4%).

O Brasil parecia menos deprimido, porém, talvez porque ainda não tivesse passado por quase quatro décadas de fracasso econômico, e havia esperança política.

Além de previsões erradas na economia, para variar, havia chutes de variada espécie, avalizados por cientistas (o décimo planeta do Sistema Solar; o Pará seria grande produtor de petróleo). Para economista­s, “o fundamenta­l em 1984 será a política econômica adquirir confiabili­dade” (rir, rir, rir), mas o ano “ainda será de grande incerteza” (rir, rir, rir).

“Cidade festeja mais cedo o fim do ano”: “Talvez por ter sido um ano tão difícil, parecia que todos tinham muita pressa de se livrar deste 1983”. No último dia de expediente, as pessoas jogavam papel picado das janelas dos escritório­s do centro. Na Liberdade, descendent­es de japoneses distribuía­m milhares de bolinhos de arroz no final do ano. A festa de rua da virada era no Bixiga.

A sensação nas lojas era a chegada dos videogames. A sensação religiosa era o encontro de 30 mil Testemunha­s de Jeová no Morumbi. O prefeito de São Paulo era Mário Covas, avô de Bruno Covas, prefeito de São Paulo.

“Estará definitiva­mente encerrada a tradição intervenci­onista das Forças Armadas na política?” era a pergunta da página Tendências/Debates. “O que será de nós em 1984?”, era o debate no auditório Folha no dia 28. Não houve resposta.

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