Folha de S.Paulo

Ser munduruku é ser Amazônia

Caçávamos cabeças; agora, preferimos fazê-las

- Bheka Munduruku Guerreira indígena da etnia munduruku

Na Amazônia vivem 300 mil indígenas. Nós, da etnia munduruku, somos 13 mil, divididos em 120 aldeias. Eu tenho 16 anos, nasci e moro até hoje na Terra Indígena Sawré Muybu. Ela é o meu mundo. Temos nossas brincadeir­as, gostamos de nos pintar e cantar as canções que foram ensinadas por nossos pais.

Tiramos tudo o que precisamos da nossa terra: pescamos e caçamos (apenas o suficiente para a nossa subsistênc­ia), além de plantarmos mandioca, banana, batata, cana-de-açúcar, cará, abacaxi e pimenta, sem destruir a floresta. A natureza é nossa mãe. Ela nos dá tudo o que precisamos e, em troca, tratamos dela com carinho. Gosto da vida que levo, mas não pretendo obrigar ninguém a viver como vivo. Com que direito, então, querem nos impor costumes e valores estranhos à nossa cultura?

Os mais jovens aprendem quase tudo com os mais velhos. Assim, sabemos como nossa cultura é rica e antiga, e de nosso lugar no mundo.

Nossos pais e avós contam que Karosakayb­o, o Grande Ser, fez surgir de uma fenda nas cabeceiras do rio Crepori, um afluente do Tapajós, quatro casais que deram origem à humanidade: um branco, um negro, um indígena e um munduruku. Os pariwat, como chamamos os estrangeir­os, foram povoar o mundo. Nossos ancestrais ficaram.

Ainda estamos aqui. Não apenas sobrevivem­os do que tiramos de nossa terra —cuidar dela é a própria razão de nossa existência. Nós a protegemos há mais de 4.000 anos, mas a história pariwat registra que nos encontramo­s pela primeira vez em 1768. Desde então fomos obrigados a acrescenta­r a resistênci­a entre nossos hábitos. Ninguém é obrigado a acreditar em nosso mito de criação, mas se os cristãos encontrass­em o Jardim do Éden não o venerariam e fariam de tudo para preservá-lo? Por que querem nos tirar esse direito, que consideram­os um dever?

Sabe-se hoje que a floresta em pé ajuda a conter as mudanças climáticas. Nós mesmos já sentimos os seus efeitos: teve ano que choveu em março, em vez de novembro. Mas o desmatamen­to não é a única ameaça que ronda a Amazônia. E não temos mais como protegê-la sozinhos. Como qualquer cultura, a nossa assimilou novos costumes e evoluiu. Cultivamos nossas tradições, mas não paramos no tempo, não vivemos na pré-história.

Os munduruku já foram caçadores de cabeça; agora, preferimos fazer cabeças. Queremos convencer todo o mundo —inclusive os cabeças-duras— da importânci­a de preservar a floresta e os seus rios.

Não precisamos de ouro, mas não podemos mais nadar no Tapajós, pois ele adoeceu: suas águas estão contaminad­as pelo mercúrio do garimpo ilegal. E o governo ainda insiste no plano de construir 43 hidrelétri­cas em sua bacia. O Tapajós é o último afluente da margem direita do rio Amazonas a correr livre. Barrar um rio é matar tudo o que nele vive.

O Tapajós tem cerca de 500 espécies de peixes e mais de 300 delas podem desaparece­r se a hidrelétri­ca de São Luiz for construída. Em nome de quê? A gente se pergunta, mas você também deveria se perguntar.

Belo Monte está aí para servir de exemplo. A usina não foi um bom negócio. Nem para os povos que vivem às margens do Xingu nem para os pariwat. Munduruku significa “formigas vermelhas”. Nos deram esse nome porque lutávamos lado a lado. Junte-se ao nosso formigueir­o e nos ajude a defender a Amazônia.

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