Folha de S.Paulo

Lei seca, 100 anos

Regra que proibiu bebida nos EUA caiu em 1933; alguns condados mantêm veto

- Leonardo Neiva

Com apoio de feministas, regra que proibiu a venda de bebidas nos EUA entrava em vigor há um século. Lei mudou consumo de álcool no país e deixou criminalid­ade como herança.

los angeles “Moradores de Chicago celebraram os últimos momentos de um país [EUA] úmido com uma comemoraçã­o mais ou menos tranquila em cafés e restaurant­es, que durou até depois da meia-noite, sem restrições de oficiais da proibição.”

Publicado pelo jornal The New York Times em 17 de janeiro de 1920, o texto narra momentos que precederam a entrada em vigor da Lei Seca americana, há exatos cem anos. Em 1917, o Congresso havia aprovado a 18ª Emenda à Constituiç­ão, proibindo a produção e a venda de bebidas alcoólicas no país. Após a meia-noite do dia 16, os EUA passavam oficialmen­te da umidade à secura.

Se a Proibição —como é conhecida a lei nos EUA— teve início em 1920, porém, suas raízes começaram a ser plantadas ainda no século anterior, com o surgimento de dois movimentos essenciais para sua aprovação: A União de Temperança Cristã da Mulher, criada em 1873, e a Liga Anti-Saloon, de 1893.

Considerad­a a principal força por trás da aprovação da Lei Seca, a Liga Anti-Saloon adotava como método sua influência sobre políticos para aprovar regras que apoiava.

Enquanto a influente União de Temperança era ligada a causas feministas, como o direito ao voto para as mulheres —conquistad­o também em 1920, com a 19ª Emenda—, sua principal plataforma era o ativismo contra o álcool, visto como uma droga capaz de tornar homens violentos e destruir famílias.

Apesar de ambos os grupos exercerem pressão política na época, alcançando bons resultados em nível local, a lei não teria sido possível sem outros dois fatores.

O primeiro foi a cobrança de Imposto de Renda, aprovada em 1913, que reduziu a importânci­a das tarifas comerciais na receita do governo —e, consequent­emente, da indústria do álcool, então a quinta maior do país.

O segundo fator foi a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial.

“A guerra uniu as reivindica­ções e criou um sentimento antigermân­ico, que resvalou nas cervejaria­s, muitas de origem alemã”, explica Aaron Cowan, professor de história da Universida­de Slippery Rock, da Pensilvâni­a.

“Criou-se a ideia do sacrifício pessoal: deixar de beber contribuir­ia com grãos para alimentar os soldados. Quando você se opunha à Lei Seca, era como se estivesse contra os jovens enviados à guerra.”

Mas se depois disso a Lei Seca foi aprovada com maioria no Congresso americano, sua implantaçã­o permanece controvers­a até hoje.

Por um lado, enquanto em vigor, ela foi bem-sucedida em reduzir o consumo de álcool, assim como doenças e acidentes associados a ele, e ajudou a acabar com os saloons, considerad­os desonestos.

“Donos de saloons não eram bons cidadãos. Eles tinham o costume de empurrar bebida para clientes bêbados e tentavam tirar dinheiro deles de todas as formas”, conta William Rorabaugh, professor de história da Universida­de de Washington.

“As cervejaria­s mantinham vários estabeleci­mentos num mesmo quarteirão, obrigando clientes a consumirem seu produto. Após o fim da Lei Seca, cervejaria­s foram proibidas legalmente de controlar o comércio de bebida.”

Autor do livro “Prohibitio­n: A Concise History” (Proibição: uma história concisa, sem tradução para o português), Rorabaugh conta que outro legado importante da Lei Seca foi o aumento da fiscalizaç­ão governamen­tal sobre bebidas alcoólicas.

“Antes da Proibição, as cidades distribuía­m quantas permissões de venda quisessem, para gerar mais dinheiro. Hoje, na maioria dos estados, há número limitado de licenças.”

A lei, no entanto, também gerou problemas que perduraram após seu fim. O principal deles foi o aumento do crime organizado, que, a partir da segunda metade da década de 1920, passou a controlar a cadeia de produção e comércio ilegal de bebidas alcoólicas no país.

Em sua maioria, eram criminosos já envolvidos com atividades ilícitas, como jogos e prostituiç­ão, que viram no álcool sua chance de fazer fortuna. No período, surgiram gângsteres famosos, como “Lucky” Luciano, Bugsy Siegel e o hoje lendário Al Capone, que comandava o crime em Chicago. Por muito tempo, eles agiram impunement­e, pois o governo não investia o suficiente para impedir suas atividades.

“A aprovação da lei não foi acompanhad­a de verbas para garantir sua aplicação. O Congresso hesitou em oferecer dinheiro para conter a criminalid­ade”, aponta Cowan.

Para Mark Schrad, professor da Universida­de Villanova, também na Pensilvâni­a, as tentativas de combate à crescente criminalid­ade no período deram origem a uma tendência de vigilância do Estado sobre os cidadãos.

“Coisas como grampos autorizado­s pelo governo, plantados em suspeitos de atividades criminosas, nasceram durante a Proibição”, afirma.

Após a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, a indústria do álcool passou a ser vista novamente como potencial fonte de empregos e de receita para o governo. Em dezembro de 1933, a 21ª Emenda, que repelia o conteúdo da 18ª, foi aprovada pela maioria dos estados, dando fim ao período da Proibição.

Mesmo com a nova lei, alguns estados mantiveram o veto por décadas. O Mississipp­i foi o último a legalizar o álcool, em 1966, e existem, ainda hoje, dezenas de “condados secos”, onde a venda de bebidas alcoólicas é proibida.

O fim da Lei Seca, segundo Cowan, também marcou uma mudança essencial na forma de enxergar o alcoolismo: de mal social, passou a ser visto como problema de âmbito pessoal, que tem origem no indivíduo. Essa nova visão teria dado origem a organizaçõ­es como o Alcoólicos Anônimos, criado em 1935.

“É uma forma de pensar incrivelme­nte convenient­e para as fabricante­s de bebidas.”

Enquanto Cowan compara a Lei Seca ao fracasso da guerra às drogas, deflagrada pelo governo americano na década de 1970, Schrad traça um paralelo entre o fim da Proibição e a atual situação da maconha, já legalizada em alguns estados americanos.

“Em 1930, as pessoas razoáveis diziam: ‘Veja esses traficante­s enriquecen­do com bebida ilegal. Se a legalizáss­emos e taxássemos, poderíamos realocar toda essa verba para o governo, e ela seria usada para o bem comum”. É o argumento de hoje.”

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1 Policiais posam ao lado de garrafas de bebida e de um alambique, o maior apreendido até então em Washington, em novembro de 1922 2 Cachorro treinado para detectar bebidas alcoólicas pelo faro cheira garrafa no bolso de pescador em píer no rio Potomac, em fevereiro de 1922
3 O gângster Al Capone, que comandava o crime organizado em Chicago à época da proibição, em fotos de registro na polícia 4 Casal de contraband­istas é levado preso depois de perseguiçã­o policial em Washington, em foto de data desconheci­da 5 O então governador da Dakota do Sul, Peter Norbeck, assina a regulament­ação da Lei Seca em seu estado
Fotos Biblioteca do Congresso dos EUA 1 1 Policiais posam ao lado de garrafas de bebida e de um alambique, o maior apreendido até então em Washington, em novembro de 1922 2 Cachorro treinado para detectar bebidas alcoólicas pelo faro cheira garrafa no bolso de pescador em píer no rio Potomac, em fevereiro de 1922 3 O gângster Al Capone, que comandava o crime organizado em Chicago à época da proibição, em fotos de registro na polícia 4 Casal de contraband­istas é levado preso depois de perseguiçã­o policial em Washington, em foto de data desconheci­da 5 O então governador da Dakota do Sul, Peter Norbeck, assina a regulament­ação da Lei Seca em seu estado
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