Hoje tendência é beber menos e melhor
são paulo Em 17 de janeiro de 1920, quando a Lei Seca entrou em vigor nos EUA, aquele era um país de beberrões. Bebia-se de manhã, ao receber alguém em casa, no trabalho e em todas as refeições. Os soldados do Exército recebiam, com suas rações diárias, quatro doses de uísque.
Em seu livro “Last Call: The Rise and Fall of Prohibition” (Saideira: a ascensão e a queda da proibição), Daniel Okrent diz que no século 18 o americano adulto consumia, em média, 26,5 litros de álcool puro (etanol) por ano, ou 1,7 garrafa de destilado por semana.
A proibição de vender, transportar ou produzir qualquer bebida alcoólica (ou “licor tóxico”, como dizia a 18ª Emenda à Constituição) trouxe inúmeras e pesadas consequências.
A principal delas foi a explosão do crime organizado. Em Chicago, Al Capone fez fama e fortuna com o comércio ilegal de bebidas.
Fora isso, milhares morreram ou perderam a visão envenenados por destilados caseiros vendidos por baixo do pano, os “moonshines”, muito mais tóxicos do que as versões industriais banidas do mercado.
A única consequência positiva daquela era foi a baixa significativa —mas temporária— no consumo de bebidas alcoólicas. Segundo Okrent, a queda foi de “mais de 70% durante os primeiros anos da Proibição”.
A relativa sobriedade durou pouco. Durante os 14 anos de Lei Seca, os americanos foram achando cada vez mais meios ilícitos de comprar bebidas —produzidas por operações clandestinas ou contrabandeadas do Canadá.
Teve até brasileiro que lucrou. Cândido Fontoura, criador do biotônico homônimo, exportou à época enormes quantidades de garrafinhas de seu fortificante para os EUA. Como continha 9,5% de álcool na sua fórmula, bebiamno como se fosse um licor!
Não só os americanos seguiram enchendo a cara como a proibição teve o efeito inverso do desejado para frequentadores dos “speakeasies” —bares clandestinos que funcionavam atrás de fachadas falsas de floriculturas ou lanchonetes.
A tensão de quebrar a lei em um bar secreto fazia com que os clientes bebessem com maior intensidade e velocidade. Queriam aproveitar ao máximo cada ocasião que tinham de se embebedarem. A atmosfera era intoxicante e excitante.
Ou seja: bebia-se mais nos últimos anos regidos pela Lei Seca do que quando o álcool voltou a ser liberado. A instituição, em 1933, de regulamentações governamentais para a venda e o consumo de álcool travou o que era, até então, um obaoba sem regras. A partir daquela desaceleração a bebedeira gradualmente voltou aos níveis originais. Segundo Okrent, em 1972 o consumo médio do adulto americano já havia voltado aos altos níveis pré-Proibição.
De acordo com um levantamento do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, desde 1995, com raros intervalos de queda, o consumo vem subindo. Em 2017 o adulto americano bebeu 8,8 litros de etanol, em média. Segundo o mesmo organismo, o álcool mata 88 mil adultos americanos por ano. É a terceira principal causa prevenível de morte, depois do tabaco (campeão), da má alimentação e do sedentarismo.
Se os números assustam, na verdade bebe-se hoje nos EUA muito menos do que antes da Lei Seca —e melhor. Mark Meek, CEO do IWSR, instituto de análise do mercado de bebidas, descreve uma tendência que aponta para o crescente interesse do consumidor pela saúde mental e física.
“Isso está criando um redirecionamento interessante da preferência por bebidas de baixo teor alcoólico ou sem álcool”, diz. As pesquisas do IWSR também comprovam o aumento da demanda por drinques com menos açúcar e ingredientes naturais e de alta qualidade, como botânicos.
Na era da Proibição, o mercado era clandestino e desregulado, e vendiase muita bebida malfeita. Além disso, destilados tinham teor alcoólico bem mais elevado. Hoje o setor é rigorosamente controlado. Não há destilados que passem de 40% de álcool.
O uísque, destilado mais consumido nos EUA até a Proibição, é hoje vice-campeão de vendas, perdendo para a vodca. Em 2018 foram vendidas no país mais de 55 milhões de caixas de 9 litros de uísque.
Mas, desde a Proibição, o consumidor amadureceu e multiplicaram-se as marcas e os estilos disponíveis. As vendas estão em alta, puxadas pelo uísque japonês (coqueluche), seguido do irlandês e do bourbon.
Segundo Walter Tralli, presidente sul-americano da multinacional Beam Suntory, o uísque é também o campeão de vendas no segmento premium brasileiro. Entre as marcas da empresa, está o escocês Teacher’s —popularíssimo no Nordeste, onde é consumido com gelo e água de coco.
Tralli define a era da Proibição como um “momento muito triste”. Além de não impedir o consumo do álcool, ela deixou um rastro de violência e morte. Curiosamente, com o passar das décadas o mal foi se apagando da memória coletiva e criou-se uma imagem romantizada daqueles anos.
Nos anos 1990, surgiram em Nova York as primeiras réplicas dos “speakeasies” de antigamente, que fizeram sucesso estrondoso. Logo multiplicaram-se os “neospeakeasies”, com decoração vintage em endereços escondidos —acessíveis por uma velha cabine telefônica ou pelos fundos da cozinha de um restaurante mexicano, por exemplo.
Para Tralli, falta conhecimento sobre o tema. “As pessoas confundem clandestino com exclusivo.”
De NY, a moda ganhou o mundo, e “speakeasy” virou sinônimo de bar “cool”. Para quem vive em países liberais, não há mal em brincar de beber clandestinamente por uma noite. Já em boa parte do mundo muçulmano —e até mesmo em certos condados conservadores dos EUA—, a Proibição segue vivinha da silva.
Se há “speakeasies”, não são de faz de conta.
Com o passar das décadas, o mal daquela época foi se apagando da memória coletiva