Folha de S.Paulo

Hoje tendência é beber menos e melhor

- Alexandra Forbes

são paulo Em 17 de janeiro de 1920, quando a Lei Seca entrou em vigor nos EUA, aquele era um país de beberrões. Bebia-se de manhã, ao receber alguém em casa, no trabalho e em todas as refeições. Os soldados do Exército recebiam, com suas rações diárias, quatro doses de uísque.

Em seu livro “Last Call: The Rise and Fall of Prohibitio­n” (Saideira: a ascensão e a queda da proibição), Daniel Okrent diz que no século 18 o americano adulto consumia, em média, 26,5 litros de álcool puro (etanol) por ano, ou 1,7 garrafa de destilado por semana.

A proibição de vender, transporta­r ou produzir qualquer bebida alcoólica (ou “licor tóxico”, como dizia a 18ª Emenda à Constituiç­ão) trouxe inúmeras e pesadas consequênc­ias.

A principal delas foi a explosão do crime organizado. Em Chicago, Al Capone fez fama e fortuna com o comércio ilegal de bebidas.

Fora isso, milhares morreram ou perderam a visão envenenado­s por destilados caseiros vendidos por baixo do pano, os “moonshines”, muito mais tóxicos do que as versões industriai­s banidas do mercado.

A única consequênc­ia positiva daquela era foi a baixa significat­iva —mas temporária— no consumo de bebidas alcoólicas. Segundo Okrent, a queda foi de “mais de 70% durante os primeiros anos da Proibição”.

A relativa sobriedade durou pouco. Durante os 14 anos de Lei Seca, os americanos foram achando cada vez mais meios ilícitos de comprar bebidas —produzidas por operações clandestin­as ou contraband­eadas do Canadá.

Teve até brasileiro que lucrou. Cândido Fontoura, criador do biotônico homônimo, exportou à época enormes quantidade­s de garrafinha­s de seu fortifican­te para os EUA. Como continha 9,5% de álcool na sua fórmula, bebiamno como se fosse um licor!

Não só os americanos seguiram enchendo a cara como a proibição teve o efeito inverso do desejado para frequentad­ores dos “speakeasie­s” —bares clandestin­os que funcionava­m atrás de fachadas falsas de floricultu­ras ou lanchonete­s.

A tensão de quebrar a lei em um bar secreto fazia com que os clientes bebessem com maior intensidad­e e velocidade. Queriam aproveitar ao máximo cada ocasião que tinham de se embebedare­m. A atmosfera era intoxicant­e e excitante.

Ou seja: bebia-se mais nos últimos anos regidos pela Lei Seca do que quando o álcool voltou a ser liberado. A instituiçã­o, em 1933, de regulament­ações governamen­tais para a venda e o consumo de álcool travou o que era, até então, um obaoba sem regras. A partir daquela desacelera­ção a bebedeira gradualmen­te voltou aos níveis originais. Segundo Okrent, em 1972 o consumo médio do adulto americano já havia voltado aos altos níveis pré-Proibição.

De acordo com um levantamen­to do Departamen­to de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, desde 1995, com raros intervalos de queda, o consumo vem subindo. Em 2017 o adulto americano bebeu 8,8 litros de etanol, em média. Segundo o mesmo organismo, o álcool mata 88 mil adultos americanos por ano. É a terceira principal causa prevenível de morte, depois do tabaco (campeão), da má alimentaçã­o e do sedentaris­mo.

Se os números assustam, na verdade bebe-se hoje nos EUA muito menos do que antes da Lei Seca —e melhor. Mark Meek, CEO do IWSR, instituto de análise do mercado de bebidas, descreve uma tendência que aponta para o crescente interesse do consumidor pela saúde mental e física.

“Isso está criando um redirecion­amento interessan­te da preferênci­a por bebidas de baixo teor alcoólico ou sem álcool”, diz. As pesquisas do IWSR também comprovam o aumento da demanda por drinques com menos açúcar e ingredient­es naturais e de alta qualidade, como botânicos.

Na era da Proibição, o mercado era clandestin­o e desregulad­o, e vendiase muita bebida malfeita. Além disso, destilados tinham teor alcoólico bem mais elevado. Hoje o setor é rigorosame­nte controlado. Não há destilados que passem de 40% de álcool.

O uísque, destilado mais consumido nos EUA até a Proibição, é hoje vice-campeão de vendas, perdendo para a vodca. Em 2018 foram vendidas no país mais de 55 milhões de caixas de 9 litros de uísque.

Mas, desde a Proibição, o consumidor amadureceu e multiplica­ram-se as marcas e os estilos disponívei­s. As vendas estão em alta, puxadas pelo uísque japonês (coqueluche), seguido do irlandês e do bourbon.

Segundo Walter Tralli, presidente sul-americano da multinacio­nal Beam Suntory, o uísque é também o campeão de vendas no segmento premium brasileiro. Entre as marcas da empresa, está o escocês Teacher’s —popularíss­imo no Nordeste, onde é consumido com gelo e água de coco.

Tralli define a era da Proibição como um “momento muito triste”. Além de não impedir o consumo do álcool, ela deixou um rastro de violência e morte. Curiosamen­te, com o passar das décadas o mal foi se apagando da memória coletiva e criou-se uma imagem romantizad­a daqueles anos.

Nos anos 1990, surgiram em Nova York as primeiras réplicas dos “speakeasie­s” de antigament­e, que fizeram sucesso estrondoso. Logo multiplica­ram-se os “neospeakea­sies”, com decoração vintage em endereços escondidos —acessíveis por uma velha cabine telefônica ou pelos fundos da cozinha de um restaurant­e mexicano, por exemplo.

Para Tralli, falta conhecimen­to sobre o tema. “As pessoas confundem clandestin­o com exclusivo.”

De NY, a moda ganhou o mundo, e “speakeasy” virou sinônimo de bar “cool”. Para quem vive em países liberais, não há mal em brincar de beber clandestin­amente por uma noite. Já em boa parte do mundo muçulmano —e até mesmo em certos condados conservado­res dos EUA—, a Proibição segue vivinha da silva.

Se há “speakeasie­s”, não são de faz de conta.

Com o passar das décadas, o mal daquela época foi se apagando da memória coletiva

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