Lobby protestante ajudou a tirar regulação do papel
Lobby protestante foi essencial para tirar do papel regulação antiálcool
rio de janeiro A Bíblia não é exatamente pudica em relação a álcool. No Antigo Testamento, Noé (o da arca) é descrito como o “primeiro a plantar uma vinha”, e uma passagem de Gênesis lembra o dia em que ele “embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda”. Um dos vários exemplos de bebelança nas Escrituras.
Para cristãos americanos, contudo, a abstemia era um ponto de honra. E um panfleto que circulou pelos EUA nas últimas décadas do século 19 é peça fundamental para decifrar a Lei Seca, implantada há cem anos.
Com oito páginas, “Catecismo Cristão da Moderação” pregava que os americanos deveriam se lembrar mais de Adão e Eva, que infringiram a lei maior de Deus: “Não saciar seus apetites com coisas proibidas”. Deu no que deu.
Décadas mais tarde, o lobby protestante seria essencial para tirar do papel a lei antiálcool. E aquelas folhas datilografadas revelam um tanto da mentalidade religiosa da época, ao aconselhar aos que bebem o que bem desejam que “nós pertencemos a Deus e devemos glorificá-lo com nossos corpos”.
O álcool era visto como “veneno líquido” camuflado pela doçura das frutas. Uma ameaça à sociedade americana, atingida pela ebriedade “mais do que qualquer outra forma de pecado”. O panfleto associava à embriaguez “a causa de três quartos de todas as doenças e pobreza e infelicidade e crime em nossa terra”.
A WCTU, associação de cristãs pró-sobriedade, foi o núcleo da campanha proibicionista, diz à Folha Lisa McGirr, professora de Harvard e autora de “The War on Alcohol: Prohibition and the Rise of the American State (guerra contra o álcool: Lei Seca e a ascensão do Estado americano).
Fundada em 1873, a organização convocava mulheres a “fazerem de tudo para melhorar a sociedade”, afirma McGirr. E a temperança (virtude de quem é comedido), nesse sentido, “fazia parte de uma reforma maior do ethos”.
Frances Willard (1839-1898), sua mais famosa presidente, influenciou duas emendas da Constituição americana: 18ª (Lei Seca) e 19ª (que deu às mulheres o direito de votar).
Em sua autobiografia, de 1889, Willard narrou a primeira vez que pisou num bar, em Pittsburgh. Decidiu que precisava começar uma cruzada contra a cultura do pileque.
Retornou à bodega com mais fiéis. “Uma mulher de voz doce começou a cantar: ‘Jesus, a água da vida dará’. Nossas vozes logo se misturaram”.
Ao longo dos anos, outras organizações, como a Liga Anti-Saloon, fizeram coro, e a motivação religiosa ganhou um aliado de peso: economistas se preocupavam com bebedeiras que atrapalhavam o rendimento da força de trabalho.
“Em 1923, com a proibição do álcool amplamente desprezada, grupos protestantes adotaram tom cada vez mais severo em relação a imigrantes, a quem culpavam sem evidências, por violações”, diz McGirr. “A WCTU de Indiana aprovou resolução pedindo a deportação daqueles condenados por violações da lei.”
A mesma religiosidade que impulsionou a legislação foi usada para dar um olé nela. Assim como hoje a maconha é vetada, mas vários lugares permitem seu uso medicinal, a lei de um século atrás aceitava exceções: ok consumir álcool em tratamentos médicos e cerimônias religiosas.
Muitos viram aí uma brecha. Com prescrição do doutor, era possível conseguir, per capita, quase 2 litros de goró por mês. Naqueles anos, vários membros da mesma família adoeciam do nada. Coincidência, claro. Já a demanda por vinho sacramental de igrejas e sinagogas disparou.
Com a derrubada da lei em 1933, a bebida voltou às prateleiras. A cruzada das mulheres cristãs não secou. O WCTU está na ativa até hoje.
Estima-se que, nos anos 1830, um americano bebia 88 garrafas de uísque por ano, três vezes mais do que seus descendentes do século 21. Mas o número ainda inquieta.
“A temperança continua a ser relevante em 2020”, diz Bunny Galladora, relações-públicas da entidade. Beber, ela diz, “frequentemente contribui para abusos domésticos, estupros e atividades ilegais”.
“Cristão” também está na sigla do grupo, ela lembra. “Nossa associação começou numa igreja batista. Pregadores davam sermões sobre os perigos do álcool diabólico.” Pois continuam.
A cruzada das mulheres cristãs que formaram o núcleo pró-Lei Seca não secou